Trabalhei com Carlos Hugo Christensen como segundo assistente de direção em 1969, no filme Anjos e Demônios, minha estreia profissional no cinema. De origem pobre, negro e morador de Madureira, subúrbio carioca, eu era um espectador das solitárias sessões da tarde e sonhava em dirigir filmes. Conhecia o diretor pelos trabalhos que assistia nos cinemas do bairro. Eram para mim belos, mas destoavam do contexto da época e eu mesmo não entendia por que eles me fascinavam. Estávamos no fim dos anos 60 e eu tinha dezoito anos. Nessa época, o cinema brasileiro era elogiado como o “moderno Cinema Novo” e os filmes que mais se destacavam, para a crítica, eram os ideológicos, engajados em ação e imagens a serviço de um pensar que se acreditava revolucionário e libertário.
Walter Hugo Khouri e Carlos Hugo Christensen eram meus diretores favoritos, o que me trouxe, nesse período, uma série de polêmicas juvenis (algumas bem acirradas) com amigos e cinéfilos que encontrava em cineclubes de bairro ou de escolas. Estranhamente, justo os meus diretores favoritos não se enquadravam no esquema do discurso político, que era a tônica no fim daquela década.
E o que me fascinava em Christensen? Essa pergunta eu precisava responder a mim mesmo, pois do contrário me sentiria como um alienado político no momento histórico em que vivia. O que me agradava no cinema dele para defendê-lo? Em que ele se impunha, proeminente, nessa fase tão importante pela qual o Brasil passava? Responder essas perguntas foi a razão da minha vida enquanto futuro cineasta. Compreender esses porquês foi meu enigma intelectual por quarenta anos, desde que o procurei e pedi para trabalhar com ele. Mas, na verdade, essas questões começaram muito tempo antes de eu trabalhar com Christensen e Khouri. São questões ligadas ao sentido da arte, ao porquê do prazer estético ao contemplarmos uma obra. Questões que nortearam Sófocles, Shakespeare e, modernamente, Fitzgerald e Strindberg (autores que releio sempre). São questões ligadas à arte e que fazem eco em mim até hoje, aos 66 anos de idade
Carlos Hugo Christensen, além de ter sido um competente e grande diretor, era um homem do mundo, um poeta que destilava em seus filmes uma forma clássica e universal de arte. É nisso que ele se diferencia, e muito mais ainda em 1969, do estreito cinema de enfoque político momentâneo e fortuito. Para nos posicionarmos melhor historicamente, Christensen teria feito 100 anos em 15 de dezembro de 2014. Na década de 50 ele chegou ao cinema brasileiro já amadurecido depois de quase trinta filmes na Venezuela, Peru, Chile e Argentina. O que se pode inferir de Meus Amores no Rio, Crônica da Cidade Amada, Viagem aos Seios de Duilia, O Menino e o Vento e Anjos e Demônios, filmes importantes da fase brasileira, é um criador no auge de sua plenitude, à semelhança de Howard Hawks e John Houston (para citar apenas dois) conseguindo, em qualquer tipo de filme, da comédia à tragédia, com maestria, inserir um discurso poético universal e humano que ultrapassa a condição mecânica de simples diretor de filmes e o coloca como um autor, como detentor de uma marca que suplanta qualquer tema. Em Christensen pode-se falar de poesia em todos os seus trabalhos. Vejamos: poesia fantástica em Enigma para Demônios; poesia juvenil, ingênua e romântica em Matemática Zero, Amor Dez; poesia tempestuosa e expressionista em O Menino e o Vento; poesia nostálgica e atemporal no passado perdido de Viagem aos Seios de Duília. Nesses filmes eu estava presenciando, em minha juventude, pela primeira vez, a existência de um autor distante do político e do ideológico. Era a descoberta de outra forma de fazer cinema.
Conhecê-lo pessoalmente e trabalhar na equipe de Anjos e Demônios, num longínquo 1969, foi constatar a realidade de tudo o que previa de antemão. Como ser humano, ele era um gentleman. Como diretor no filme, de produção industrial complexa, lembro dele como um professor. Por trás das câmeras, vê-lo dirigir e poder observar in loco as dinâmicas da produção, da filmagem e da finalização da obra, até a dublagem e a montagem, foi um curso completo de cinema e arte.
Além de tudo isso, como se constata em Meus Amores no Rio, Crônica da Cidade Amada e Esse Rio que Eu Amo, Christensen foi um “brasileiro e carioca de coração”, como foram Antônio Maria, Ary Barroso e tantos outros. Ele enalteceu e legou ao Rio uma parte bela e significativa de sua extensa obra. Lamento sempre que o reconhecimento que foi dado a muitos, como os citados, não teve eco em homenagens ao seu nome, seja em uma rua ou em um beco qualquer dessa cidade que ele muito amou.
Afrânio Vital