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Carlos Hugo Christensen, Saltos no Vazio

Meu fascínio pela carreira cinematográfica de Carlos Hugo Christensen começou quando três eventos-chave se cruzaram na minha vida: pesquisava sobre produções regionais, viajei pela primeira vez ao Rio de Janeiro e conheci Carlos Hugo em Mar del Plata. Fomos apresentados por um amigo comum, Goyo Anchou, historiador de cinema e colega de programação do festival de Mar del Plata. O ano era 1997 e tínhamos uma retrospectiva dos filmes de Christensen em cartaz.

Lembro-me de que ficamos espantados. Não podíamos acreditar que estávamos diante daquela lenda do cinema. Não só o admirávamos como conhecíamos seus filmes da “era de ouro” do cinema argentino.

Carlos Hugo Christensen nos Estúdios Lumiton (1940)

Mas, nesse breve contato, percebi que desconhecia por completo sua trajetória desde que se mudara para o Brasil. Considero-me curioso e interessado no cinema contemporâneo, na novidade dos festivais, que tinha viajado para o país irmão, mas não tinha em conta o seu trabalho posterior a 1955. O cinema brasileiro, ao qual se juntou na metade da vida, era desconhecido para mim e também para meus colegas argentinos. Isso se refletiu naquela retrospectiva de 1997, em Mar del Plata, pois contemplava apenas a carreira de Christensen na Argentina. Percebi então o abismo que separava a cultura cinematográfica dos dois países. Foi assim que uma porta se abriu para um projeto de pesquisa que prossegue até hoje. Naquele momento percebi que sabia apenas o primeiro capítulo da obra de um cineasta, senti que não tinha o conhecimento de sua obra completa e a ignorada cinematografia brasileira me pareceu diferente e atraente. E também, é claro, abriu-se diante de mim a oportunidade de conhecer esse outro lado da carreira de Carlos Hugo. Decidi fazer esse percurso, seguir o caminho daqueles que construíram pontes na indústria cinematográfica (o caminho acabou tendo uma abrangência latino-americana). Comecei minha pesquisa no Rio de Janeiro, a cidade que o cineasta escolheu viver (e morrer).

Foi lá que conheci Francisco Marques, produtor, diretor assistente e amigo de Christensen. Além de colaborar com minha pesquisa sem hesitação –respondendo a todas as perguntas com paciência infinita–, iniciamos uma amizade. Lancei-me à tarefa de pesquisar sobre os filmes no Brasil.

Pareceu-me que, enquanto a pesquisa avançava, era fundamental começar a dar a conhecer algumas de suas obras ao público argentino, que ignorava toda ou quase toda sua fase brasileira, com exceção de filmes como A Intrusa (1979) e alguns outros.

Assim, apresentamos uma pequena amostra de seu trabalho em Mar del Plata e pude verificar que a recepção do público a esses poucos filmes foi fervorosa e gratificante.

Foi muito interessante ver a diversidade que sua filmografia alcançara no Brasil. Seus temas tinham mais vigor, havia mais liberdade criativa; sua habilidade e estilo foram depurados; o contexto havia permitido que questionasse com mais profundidade aspectos da mise-en-scène em geral. Era possível notar por trás dos filmes um ser lançado na busca de si mesmo e o cinema como veículo para essa viagem.

Esse conjunto de filmes no festival de Mar del Plata foi apenas o primeiro passo na tarefa de reivindicação da obra de Christensen entendida como um todo, sem divisões territoriais. Essa empreitada prossegue na presente retrospectiva.


Diretor sem fronteiras

Traçar a linha do percurso cinematográfico de Carlos Hugo é fazer um desenho no mapa. As viagens pela América do Sul (pelo interior da Argentina e depois Chile, Uruguai, Venezuela e Brasil -da Bahia até São Paulo) tecem uma história do cinema latino-americano. Podemos pensar que, como diretor em trânsito –sujeito viajante–, a experiência o transfigurou e por essa razão seu cinema está em constante mutação. A filmografia não é extensa apenas no número de filmes, mas também se expande numa série de gêneros e estéticas.

Arturo García Buhr em El inglés de los güesos (1940)

Desde a época em que dirigia para os grandes estúdios argentinos, Christensen surpreendeu; experimentava gêneros, principalmente melodramas e policiais, com um trabalho de câmera variado e uma ênfase especial no uso da iluminação e no registro dos atores. A produção desta primeira fase de sua carreira ficou circunscrita à indústria (o diretor começou no cinema com um contrato exclusivo com os Estúdios Lumiton). Durante esse primeiro momento de sua filmografia não são abordadas questões de compromisso social, de crítica e muito menos de luta popular (tema mais que importante na Argentina nos anos 1940). Começa a aparecer um diretor que lida com o rigor de textos, cujos argumentos não precisam negociar com nenhuma ideia pobre do popular (conseguindo justamente a partir disso atingir as massas) colocadas em cena e registros minuciosos. Um diretor com habilidade suficiente para pular de um gênero a outro e sempre sair ileso.

Christensen aprendeu seu ofício trabalhando com o star system da época, num estúdio com tecnologia moderna, lidando com a construção de grandes cenários, espaços luxuosos, figurinos elaborados e sofisticada caracterização dos ambientes.

Nesse universo, problematizou o tema da moral e da psicologia dos personagens. São personagens recorrentemente trágicos; sofrem o amor de uma maneira tão desenfreada e transbordante que os leva à perversão e à morte. Outra característica de sua obra –subordinada à ideia de diretor viajante– é a alteridade. O tema da relação com o outro cultural será um tópico não apenas na obra, mas também na vida de Carlos Hugo. Desde o seu primeiro longa-metragem, El inglés de los güesos (1940), essa temática aparece. Há um trabalho no olhar sobre o outro. Narra o amor de uma jovem da pampa por um inglês e mostra a distância entre as duas culturas a partir dos hábitos e costumes de ambos os mundos para depois juntá-los num romance.

Christensen sofreu a alteridade em seu país. Em primeiro lugar, a censura exercida pela Igreja Católica. Embora o Ente de Calificación Cinematográfica tenha entrado em funcionamento legalmente estruturado em 1969, a censura no cinema argentino era exercida de fato desde sempre, relacionada ao discurso religioso. Christensen filmou o primeiro beijo, o primeiro nu e foi o pioneiro do melodrama erótico na Argentina com Safo, historia de una pasión (1943). É interessante como nesse filme o diretor leva a cabo uma estratégia discursiva para garantir que não fosse proibido. Basicamente, colocou nos letreiros iniciais os dizeres: “Versão cinematográfica da obra que Alphonse Daudet dedicou a seus filhos e escreveu para a educação moral dos jovens de todos os tempos”, terminando com outro letreiro que reza: “Para meus filhos, quando tiverem vinte anos...”. A ideia edificante acerca dos bons costumes resulta de um trabalho epistemológico feito pelo diretor sobre o outro cultural –o discurso da Igreja e o pensamento conservador vigente– para conseguir que Safo... não fosse censurado. Foi um sucesso de público e ficou mais de um ano em cartaz.

A segunda alteridade na carreira de Christensen foi exercida a partir de outro poder: o Estado. Uma política cultural de perseguição e censura, além da violência social exercida no final do segundo mandato peronista foram as causas do exílio de Carlos e sua família. Transcorria o ano de 1955, um período marcado pela tragédia na Argentina. Pouco depois de sua partida aconteceu o massacre na Plaza de Mayo com o bombardeio das Forças Armadas contra a população civil. Assim começou de fato o governo autodenominado “Revolução Libertadora”, que em 1956 também restringiria a apresentação dos filmes de Christensen no país.

A terceira alteridade é consequência da viagem, de ir para o desconhecido (saltos no vazio). Carlos é um estrangeiro em outro país. Chega ao Brasil a convite do festival de São Paulo e aí permanece para formar uma rede de cinema regional. A primeira produção, Mãos Sangrentas (1954), era um arranjo entre quatro partes: dois produtores brasileiros (Maristela e Roberto Farias), Arturo de Córdova (México) e o próprio Christensen (Argentina). A equipe técnica, que continuou a trabalhar em mais filmes, era predominantemente composta por brasileiros e argentinos. Um dos temas mais interessantes –ou, pelo menos, mais imperioso–que surge a partir dessa mistura é o idioma. Os filmes não foram dublados, mas as cenas foram filmadas em espanhol e em português, uma após a outra.

Mãos Sangrentas significou uma transformação claríssima na cinematografia de Christensen. É produto da passagem para outro país, outra cultura, outra língua. Houve uma mudança total no formato da produção e o resultado é um filme que se afasta dos projetos cinematográficos que ele havia feito até então. O filme trata de fatos reais: a fuga da prisão da Ilha de Anchieta, em Ubatuba, no Estado de São Paulo. Embora tivesse experiência no gênero policial, principalmente no estilo noir, aqui a estilização visual é completamente diferente, relacionada com o neorrealismo italiano. O tratamento da problemática lei/direito é diametralmente diferente: enquanto que nos filmes policiais argentinos ambos não se confundiam, em Mãos Sangrentas se representa a violência exercida pelos carcereiros sobre os presos e em seguida começa o motim e a fuga da ilha. O filme não acontece num ambiente fechado, nem sequer na cidade, mas a céu aberto, na mata, e com uma massa de atores não profissionais que conferem uma atmosfera de forte expressividade. Pode-se pensar que a partir da chegada de Christensen ao Brasil sua filmografia foi transfigurada, vinculando-se não apenas com problemas morais, mas também sociais.

A partir do momento em que se instalou no Rio de Janeiro, o trabalho de Carlos Hugo deu uma guinada inesperada. A experiência da viagem significou um repensar inevitável das condições de produção e circulação. Além disso, experimentar um novo campo artístico deu nova significação ao seu trabalho criativo. No Brasil, ele dirigiu sua própria produtora, a Carlos Hugo Christensen Produções Cinematográficas. Assim, ele tomou as rédeas dos projetos, ao contrário do trabalho que realizara nos estúdios argentinos, onde estivera sujeito às restrições de uma indústria regida pela busca do sucesso e da aceitação do público.

Logotipo dos Estúdios Lumiton

Durante minha pesquisa, à medida que assistia aos filmes comecei a descobrir que as produções no Brasil respondiam a uma busca muito pessoal, com histórias sensíveis e desprovidas de preconceitos. O tratamento dos corpos, dos hábitos sexuais, das relações com os afetos estão sempre entrelaçados. O erotismo é uma variável admitida por todos os gêneros. Da comédia ao policial, passando pelo drama nostálgico ou pelo filme de ação. As forças vitais, sejam da natureza ou do próprio homem, se cruzam e se estimulam. Não há limite moral, apenas conjunturas.

Os filmes produzidos em Buenos Aires tinham sido muito transgressores, lembremos que El ángel desnudo foi o primeiro filme argentino a exibir um nu (por casualidade, teve cenas rodadas no Rio de Janeiro). Mas o trabalho feito no Brasil significa a libertação completa do diretor na realização de seu trabalho criativo: reformula gêneros, experimenta com eles e os explora. Christensen foi agraciado com vários prêmios e menções honrosas ao longo da carreira, não apenas no Brasil e na Argentina, mas também em festivais internacionais. Foi indicado para o grande prêmio do festival de Cannes com La Ballandra Isabel llegó esta tarde (Venezuela, 1950), participou da seleção oficial do Brasil no festival em Veneza com Mãos Sangrentas e foi indicado para o Urso de Ouro do Festival de Berlim por Meus amores no Rio. Um dia antes de sua morte, recebeu um prêmio pelo conjunto de sua obra em Buenos Aires; poucos meses antes, no 18º Festival dos Três Continentes, em Nantes (França), oito de seus filmes foram escolhidos para a mostra dedicada ao melodrama no cinema argentino. Postumamente, seu trabalho continuou nas telas em todo o mundo. Uma projeção foi realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York e, em 2007, uma cópia do multipremiado La Ballandra Isabel llegó esta tarde foi exibida em Los Angeles: foi o único filme falado em espanhol no 21st Annual Last Remaining Seat Series selecionado pela Latin American Cinemateca of Los Angeles. Christensen conquistou um lugar na história do cinema argentino como um dos diretores mais prolíficos em produções nacionais; não obstante, seu trabalho no cinema brasileiro, salvo algumas exceções, é pouco estudado e reconhecido. Apesar de ter sido pioneiro na mudança dos limites geográficos da indústria cinematográfica latino-americana, especialmente nos países onde residiu, Argentina e Brasil, Christensen é pouco lembrado pelos colegas de outra geração. A contribuição do diretor argentino à cinematografia de ambos os países ainda não havia sido estudada em seu conjunto até a presente retrospectiva. O projeto de pesquisa e de realização de um documentário que levo adiante procura resgatar sua figura e continuar a tarefa de cooperação regional cinematográfica, empreitada na qual Christensen foi pioneiro e que ainda tem muito a ser feito.

Atualmente, continuo a desenvolver o documentário. As várias horas de entrevistas, de rodagens em lugares onde ele filmou, de depoimentos sobre sua pessoa e sua obra só servem para estimular ainda mais a minha imaginação e reafirmam minha fé no ofício.

Talvez, além do valor intrínseco da sua obra, o que tenho claro nesta altura do meu trabalho é que Christensen representa um modelo romântico de aproximação ao cinema. Não é somente uma atividade ou ofício, mas uma maneira de colocar a vida em perspectiva e aventurar-se nela.

Martin Maisonave



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