Portal Brasileiro de Cinema Leila Diniz. Maior que a vida, melhor que os filmes
Leila Diniz. Maior que a vida, melhor que os filmes José Carlos Monteiro
Durante pelo menos cinco anos, ofuscando outras rivais, ela foi considerada a estrela do Brasil. Tinha talento e beleza, uma contagiante espontaneidade, um jeito todo especial de exibir na tela os eláns da beldade nacional moderna, meio-menina, meio-mulher, totalmente à vontade em sua combinação de sensualidade e inocência. Mas sua era de brilho, irresistivelmente impulsionada e marcada pela emergência da contracultura em meados da década de 60, estava destinada a ser efêmera. Na manhã de 25 de junho de 1972, o país soube que a estrela de Leila Diniz deixara de brilhar. O nome dela figurava na lista de vítimas de um acidente aéreo nos céus da Índia. Era difícil acreditar que a imagem de Leila se eclipsara naquela terra estranha, entre uma tempestade de areia e uma temperatura de 45 graus. Os brasileiros receberam com perplexidade a notícia da tragédia. Num desastre estúpido, improvável, perderam um de seus pólos de referência. O abalo emocional provocado pelo brutal desaparecimento da atriz refletia a imensa influência pessoal acumulada por ela ao longo de seus cinco intensos anos de "reinado". De fato, com a desaparição de Leila, perdíamos uma emblemática personalidade. Num lamento algo exagerado, mas pertinente, a imprensa estampava que o show business ficava sem uma estrela, os telespectadores sem seu modelo mais invejado, e nosso cinema sem sua maior ou mais promissora atriz. Não tanto uma intérprete nos moldes clássicos, mas uma persona singular, ao mesmo tempo apaixonante e sensual, ousada e tímida. Em seus 27 intensos anos de vida, numa trajetória tão meteórica quanto eclética, Leila trilhou caminhos diversos, num impressionante rodízio existencial e profissional. Foi garota-propaganda, artista de televisão e vedete de teatro-revista, mas se notabilizou mesmo na tela do cinema. Versátil, encarnou com ampla espontaneidade personagens cômicos ou trágicos, profundos ou superficiais. Não eram, certamente, papéis perfeitamente uniformes, careciam daquela "dosagem exata de espiritualidade e sensualidade", visível nas stars hollywoodianas. Mas neles havia uma forte carga erótica, um malicioso magnetismo, uma irrequieta empatia. O contato inicial de Leila com o cinema não foi diante das câmeras, mas por trás delas. Paciente e meiga, a professorinha primária de Niterói "atuou" como babá da equipe mirim mobilizada pelo sueco Arne Sucksdorf para contar em Fábulas uma história de meninos pobres do Rio. Quando se deslocou para a frente das câmeras, em O mundo alegre de Helô (1966), não chegou a impressionar. Foi rápida demais sua aparição nesse opaco melodrama de Carlos Alberto de Souza Barros. O brilho fulgurante viria, inevitável, no mesmo ano, nas imagens de Todas as mulheres do mundo, a emocionante comédia romântica de Domingos de Oliveira. Como Maria Alice, professora que conquista um sedutor profissional (Paulo José), Leila fascinou o público e a crítica. A sensualidade, candura e graça da personagem, maravilhosamente criada à sua imagem e semelhança, sugeriam algo do jogo de Joseph von Sternberg em sua imantação do fascínio de Marlene Dietrich. Ou da associação Roger Vadim-Brigitte Bardot, sem esquecer da relação Jean-Luc Godard - Ana Karina. Depois da revelação de Todas as mulheres, naturalmente esperava-se para Leila o melhor: grandes filmes, diretores importantes, personagens maravilhosos. Sabemos o que aconteceu. Passou praticamente despercebida ao lado de Silvia Pinal no segundo episódio (Divertimento) da co-produção brasileiro-mexicana Jogo perigoso, administrada pelo buñueliano Luiz Alcoriza. Voltou a trabalhar com Domingos de Oliveira numa variação em torno do mesmo tema (o donjuanismo carioca) e com o mesmo protagonista (Paulo José) da sua fita de estréia, Edu coração de ouro (1967), que usou parcimoniosamente seus préstimos, como Tatiana, uma das conquistas do playboy do título. Em seguida, resignou-se a interpretar Mariana, "a esposa não muito exemplar" de O homem nu (1967), amarga comédia do paulista Roberto Santos, adaptada de uma história de Fernando Sabino. Inabalável, Leila foi em frente. No modesto policial Mineirinho vivo ou morto (1967) destacou-se não apenas por ser figura de exceção num cast praticamente masculino, mas por irradiar (mesmo episodicamente) paixão, candura e humanidade. Os críticos reconheceram a contribuição dela, parêntesis de verossimilhança na artificiosa crônica de Aurélio Teixeira sobre o banditismo carioca. A essa altura, já confirmada como personalidade luminosa, que acumulava participações em telenovelas de amplo êxito popular (O sheik de Agadir, Eu compro essa mulher, Anastácia, a mulher sem destino, Vidas em conflito) e intervenções públicas controversas (a entrevista ao semanário Pasquim), a atriz merecia muito mais. Na atividade múltipla, irrequieta de Leila havia um corpo e uma alma exigindo papéis à altura de sua força estelar. Mas esses papéis não chegavam, apesar de a atriz continuar cada vez mais solicitada. O paulista Carlos Coimbra, encantado com os traços físicos e a expressividade dramática de Leila, escalou-a para encarnar uma das figuras exponenciais do cangaço nordestino, Dadá, companheira do braço-direito de Lampeão, em Corisco, o diabo loiro (1969). O empenho dela (que chegou a fazer laboratório com a própria Dadá) foi insuficiente para injetar grandeza nesse nordestern pouco mais que trivial. Na segunda parceria Coimbra-Leila, Madona de cedro (1968), a morenice da atriz foi usada para conferir calor humano à piedosa versão cinematográfica do romance de Antônio Callado encenada por um artesão falsamente versátil. Pelas mãos de Reginaldo Faria, ela volta em Os paqueras (1968) ao universo urbano e às complicações romântico-existenciais dos conquistadores cariocas. Esses filmes, qualidades à parte, não dizem tudo o que ela era. O segundo momento extraordinário da carreira de Leila aconteceu em Fome de amor (1968). Nessa alegoria político-social de Nelson Pereira dos Santos, vagamente inspirada numa história de Guilherme Figueiredo, ela "realiza enfim aquilo que nos filmes anteriores só aparecia de forma fragmentária, atrofiada ou alusiva". No papel de Ula, mulher dura e cruel, que forma com o marido cego-surdo-mudo (e ex-guerrilheiro) um dos casais da trama, Leila "revela sua plenitude feminina, isto é, ao mesmo tempo a plenitude da paixão, de sua sexualidade e de sua alma". Leila-Ula "é a mulher total, que vive plenamente com a alma e o sexo", numa insaciável "fome de amor" num mundo marcado pela contradição e a dissolução. Com apaixonada sensibilidade, Nelson despoja Leila de quaisquer resquícios provincianos e libera seu incandescente erotismo, elevando-a à condição de mulher-fatal. Em 1970, Sérgio Augusto, divagando sobre nossas estrelas num texto na revista Filme Cultura, observava que, "numa escala de padrões meramente badalativos", Leila Diniz podia ser considerada a maior de todas. "Segundo a concepção de Malraux (Esquisse d'une Pscyhologie du Cinéma), Leila se situaria na zona intermediária entre a grande atriz (capacidade de se adequar, com igual força expressiva, a personagens diversos) e a estrela, categoria que supõe uma singularidade de ordem conceitual (estrela, divina = estado superlativo de beleza). Mas lamentava que, apesar do entusiasmo amoroso de Domingos de Oliveira e do empenho ardoroso da turma de Ipanema em transformá-la em musa da geração Pasquim, Leila era mais falada do que filmada. "Sua parcimoniosa passagem diante das câmaras se deve ao fato de ela ser um pouco indigesta para o paladar sofisticado do Cinema Novo e excessivamente frugal para os pantagruélicos gourmands da Boca do Lixo." Depois de Fome de amor, o universo cinematográfico ficou mais restrito para ela. Na tela, as aparições de Leila foram discretas: uma incursão ligeira em Azyllo muito louco, (1968), farsa alegórica do mesmo Nelson Pereira dos Santos a partir de O alienista, de Machado de Assis (sem muito entusiasmo, ela interpreta Eudóxia, mulher do médico da cidade); uma ponta hilariante, quase figuração, na comédia de costumes O donzelo (1971), de Stefan Wohl; e uma atuação mais ambiciosa, sob as ordens do amigo Luiz Carlos Lacerda de Freitas, na tragédia burguesa Mãos vazias (1971): ela comparece como uma mulher que desafia os modelos de comportamento depois da morte do filho. Celebrada, cultuada, imitada, mas sem grandes papéis no cinema, Leila volta ao teatro-revista (Tem banana na banda, Vem de ré que eu estou de primeira), ganha o título de Madrinha da Banda de Ipanema, escandaliza como a "grávida do ano". Só teríamos uma vez mais, em Amor, carnaval e sonhos (1972), de Paulo César Saraceni, a presença de Leila na tela. Fantasiada de pirata, ela reza por um milagre na véspera do Carnaval: um homem para a folia. Foi uma despedida melancólica, carente de empatia – e da intensidade de seus melhores papéis, em Todas as mulheres do mundo, Fome de amor e, talvez, O homem nu. Fragmentos da meteórica trajetória artística e existencial de Leila foram reunidos por Sérgio Rezende e Marisa Leão num curta de título emblemático, Leila para sempre Diniz (1974). Mais comovedora foi a homenagem do maior amigo, Luiz Carlos Lacerda de Freitas, em 1987: o bioépico Leila Diniz, em que Louise Cardoso tentava emular o carisma da jovem professora que foi mais intenso que a maioria de suas personagens. E maior que sua (curta) vida. |