Portal Brasileiro de Cinema Marieta Severo
Marieta Severo "Conheci a Leila na TV. Eu fui fazer O sheik de Agadir, que acho que foi meu primeiro trabalho em TV e o ano em que estreei. Enfim, houve um encontro. Um encontro de duas garotas animadas com a vida. E nós tivemos uma empatia imediata. Eu com 18, Leila com 19, 20 anos, por aí." O mais difícil é tentar explicar a personalidade de Leila. Tudo o que aconteceu, o que ela se tornou, é fruto dessa personalidade: o jeito bem-humorado, cativante e profundamente ligado consigo mesma. Naquela época, esse sentido de liberdade consigo e com os outros era muito fascinante. Então, por sermos até um pouco opostas, meu jeito sempre mais comedido com as coisas, talvez tenha havido essa atração e essa amizade imediata. Existia na época um desejo, uma vontade, um impulso muito grande de liberdade. Estamos falando da década de 60, especificamente 1965, bem no meio dos anos 60. Tudo o que chegava de teoria da libertação da mulher, de pílula, de movimento feminista, fervilhava onde nós estávamos, onde a gente vivia – Ipanema, Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. E a Leila era a concretização de uma teoria que me atraía, fascinava; tinha uma capacidade de conexão com seus próprios desejos, com sua vontade, e a capacidade de agir de acordo com eles. Isso resultava numa personalidade extremamente fascinante. Todo o meu contato com ela era sempre de muita alegria, muita farra, muito humor, muita brincadeira. Extremamente inteligente, tinha uma grande capacidade de avaliar sua posição, seu jeito de ser e o contexto em que vivia. Ela sabia o que estava fazendo, fez análise desde muito garota e então adquiriu logo, adolescente, essa capacidade de refletir sobre si mesma. Leila tinha pouca agressividade. Mesmo sofrendo, se abatendo, ela contornava, saía pela tangente, não brigava. Ela não era de briga, mas não quer dizer que não havia pessoas de quem não gostava, mas se manifestava em relação a essas pessoas mais de uma maneira bem humorada, jocosa e debochada do que com agressividade, raiva, rancor. Ela não teve consciência de estar fazendo uma revolução, não teve tempo para ver o efeito das suas atitudes. Nada nela era calculado. Por exemplo, na famosa entrevista do Pasquim ela está com toalha amarrada na cabeça porque ficou na praia até o último momento, chegou em casa, tomou um banho e, como o cabelo não ia ficar legal, ela botou uma toalha, e não porque aquilo podia ser atitude de anti-estrela. Essa entrevista teve um significado muito grande; o fato de uma atriz, uma mulher, uma menina de praticamente 20 anos estar falando, se expressando através de palavrões e de palavras de baixo calão era uma coisa catalogada imediatamente de vulgar, mas para ela não tinha importância. Sua maneira de se expressar era essa, então ela se expressava assim, na entrevista com o Pasquim e onde fosse. Porque ela era assim. Leila passou por várias barras pesadas. Seu maior sofrimento era quando ela era mal interpretada. Existia uma sociedade muito conservadora, por quem ela era muitas vezes mal interpretada, mas isso não fazia com que ela mudasse seu comportamento. Ela jamais mudou um passo em função desse contexto conservador, dessa má interpretação de suas atitudes. Ela não abria mão de sua força vital. Ela ia em frente, mesmo com sofrimento. Leila mergulhava muito em tudo, não era uma pessoa que passava por cima de nada, nem do sofrimento. Essa imagem da vida sem compromisso é falsa. Sua ânsia de auto-conhecimento era enorme e por isso ela fazia muita análise, escrevia compulsivamente, e o fato de ela ter tantos diários, de ter registrado tudo, foi uma busca de entendimento de si mesma, não apenas uma intuição de uma vida curta. Ela fazia as coisas, as coisas aconteciam em nome disso. De repente aquela mulher chega, se impõe de uma forma inusitada, e obviamente começam as forças contrárias a se manifestar. Na década de 60, uma mulher se expressar em relação à própria sexualidade da forma como ela se expressava e não poder ser catalogada como vagabunda, desconsertava. Leila desconsertou o contexto conservador. Porque era evidente que nada nela sugeria vulgaridade. Acabaram tentando fazer isso, no programa Quem tem medo da verdade?, onde a chamaram de puta. Mas eram as forças mais radicalmente conservadoras. Porque nas outras, ela conseguiu penetrar, conseguiu ser aceita. Porque ela tinha um sentido do feminino, espontâneo, natural. Leila era muito doce, meiga e encantadora. Tinha uma enorme capacidade de aceitar, de compor, de olhar para o outro. Eu tenho uma irmã mais moça, Lúcia, que tem uma deficiência auditiva e naquela época ficava internada numa escola especializada em São Paulo. Fiquei sabendo que Leila quando ia a São Paulo pegava um carro e ia visitá-la, e ela não era amiga da Lúcia. Era por solidariedade, afeto, generosidade. Leila tinha tudo isso, ela doava isso. Leila tinha uma capacidade amorosa muito grande. A maior dificuldade dela era se separar, era perder. Ela queria ir acumulando amor. Sem nenhum contexto, sem nenhuma lei que regulasse. Com relação ao trabalho Leila era muito rigorosa. Por exemplo, ela era das poucas atrizes que fazia a sua continuidade inteira. Mesmo tendo o continuísta da TV, ela fazia questão de fazer esse trabalho. Sua personalidade era muito forte, muito avassaladora, mais do que os próprios filmes. Ela estourou fazendo Todas as mulheres do mundo, que é muito em cima dela. Sua busca como atriz era uma das suas grandes preocupações – se exercitar, se desenvolver, se afirmar como atriz. Mas seu grande sonho era a maternidade, ser mãe. Desde muito cedo Leila teve uma dificuldade, não foi criada pela mãe, mas pelo pai, que, aliás, é uma figura determinante na sua vida. Um homem que passou para ela esse sentido de liberdade. Era um homem de esquerda, com idéias muito sólidas e muito concretas a respeito de questões políticas, e ao mesmo tempo com um sentido enorme de liberdade, de coerência consigo mesmo, de integridade com seus desejos, com seus impulsos. Leila tinha uma relação muito forte com ele, que foi fundamental, foi o esteio, na medida em que a mãe, a figura materna, foi mais falha. E seu pai passou para ela uma imensa capacidade de se aceitar e de aceitar o outro, ela dificilmente tinha um julgamento em relação à outra pessoa. Tinha uma aceitação básica do outro. O pai não tinha nenhum intuito de modificá-la, de transformá-la, aceitava-a integralmente, e não devia ser muito fácil para um pai da década de 60 aceitar uma menina com a liberdade que Leila tinha em relação a si mesma, a sua sexualidade, a sua maneira de se expressar. A morte de Leila foi o maior baque da minha vida. Primeiro porque éramos muito jovens e ela era imortal. Era muito claro, muito óbvio, que Leila não ia morrer. Era impossível associar a sua imagem a morte. Então foi avassalador. Uma coisa que era além de um sentido de realidade. Eu estava em Roma, recebi a notícia por telefone. Foi como uma catapulta que me jogava numa dimensão absurda. Do absurdo. Acho que foi o maior sentido do absurdo de vivência que tive, na minha vida inteira. Nenhuma outra perda teve a força do absurdo que teve a morta da Leila naquele momento da minha vida, nós, com aquela idade. O Rui, que era um cigano no mundo, se estruturou a partir da Janaína, mudou sua vida, mas até conseguir mudar, se estruturar, levou um tempo. Como eu já tinha uma relação pessoal com a Jana, tentei suprir um pouco isso. Minha relação com a Janaína é enorme, é minha filha. Nesses trinta anos, a maior dor de todas é ver a falta que Leila faz para ela. Leila não foi criada pela mãe, então, tudo o que ela não queria era que sua filha passasse essa falta, não queria ter uma filha e ela não estar. Então isso é muito terrível, muito cruel. Leila , hoje, talvez seja a força de transcender a si própria, à curta vida que teve e estar presente na memória de um país, nas mudanças de costumes e na visão do mundo que seu comportamento livre e responsável trouxeram. Vejo agora Janaína lendo seus diários e assimilando suas reflexões sobre a vida. Ela é o que ela ensina para a filha e o exemplo que é para as novas gerações. Isso foi o que ficou. E é muito precioso. |