Portal Brasileiro de Cinema  JÁ QUE NINGUÉM ME TIRA PRÁ DANÇAR

JÁ QUE NINGUÉM ME TIRA PRÁ DANÇAR

U-matic, 80 min

 

A perspectiva da realização de Já que ninguém me tira prá dançar... tinha duas vertentes: a de veicular o vídeo pela tv aberta, o que no início dos anos 80 significava ampliar os horizontes da produção independente, e a de contar a história de Leila antes que se tornasse uma flor pálida e sem perfume num canto da memória.

A verdade é que não foi uma escolha minha. Só aceitei porque percebi logo que não era um mero acaso. No início sabia apenas que era uma tarefa muito delicada. Aos poucos fui estabelecendo conexões e vivendo uma espécie de reeducação sentimental. Com a Leila era sempre assim. Sem fazer barulho, ela imprimia um nível de qualidade na relação humana, tamanho o seu afeto pelo próximo e o cuidado ao lidar com os sentimentos. Os dela e os dos outros. Não sei se dei conta da tarefa de documentar a sua história com a mesma intensidade e grandeza que merecia. Certamente é uma peça, a primeira, num mosaico de trabalhos que foram e serão ainda realizados sobre Leila. Fiz duas versões, uma sem recursos técnicos e com grande parte dos depoimentos editados; e outra mais curta, com 52 minutos, formato adequado para a veiculação pela tv, mas em compensação com recursos de edição compatíveis. Nunca mais revi o vídeo. Acho que deve ser tão ingênuo quanto foram aqueles tempos dos anos 60. Talvez seu mérito seja o de reconstituir a personalidade e a trajetória de Leila através de um inventário sentimental e das lembranças que, naquela altura, dez anos depois da sua partida, seus amigos ainda guardavam com frescor.

Pensar em Leila hoje me dá uma sensação de eternidade que pouco tem a ver com as dimensões do tempo ou da existência. O que nos separa a ponto de causar uma certa estranheza é muito mais o sentido e a forma que a conduta humana tem escolhido como sua representação. A razão direta entre o culto às imperfeições humanas e a velocidade com que delas se extrai proveitos e proventos, numa competição em que a vitória pertence ao mais alto grau de vilania a que se pode chegar, provoca reflexões sobre a nossa natureza e valores. Não que fosse muito diferente antes, certamente menos descarado. Leila agia bem ao contrário. Você ia com a picardia, e ela vinha com o mel. E como encarava com naturalidade tudo o que fosse próprio do ser humano, as imperfeições eram valores levados ao sabor da compaixão. Ela dispunha de espontaneidade suficiente para contrariar a hipocrisia. Sempre havia um aspecto de beleza, e a natureza estava aí mesmo para não desmenti-la.

Com a sua manipulação e conseqüente deformação, a ética anda vazia, sem sentido nem conteúdo. Atualmente pode ser invocada em nome de qualquer coisa, e esgotou-se num discurso desprovido de verdade. As máscaras caem nas Cinzas e delas renasce a fênix. Os pássaros voam em direção ao sol. Daí talvez ainda seja possível a formação de uma nova conduta na qual a consciência de nossas limitações não as utilize como uma arma, mas restaure-as como um valor. Afinal, são elas que nos tornam semelhantes. Desconfiar que a humanidade é inviável não deixa de ser uma forma sincera de compaixão. Sem desespero nem utopia. Mas tolerando as diferenças entre as nossas mais finas emoções e sentimentos, que determinam nossa razão e comportamento. Mais ou menos como a Leila.

É com essa estranheza que a vejo hoje longe e perto. Foi um encanto e não pôde mais esperar. Partiu, e está entre nós.

Ana Maria Magalhães

Direção: Ana Maria Magalhães

Assistente de direção: Juanita Dias Costa

Assistente de produção: Nenem

Edição Leaw Che Wen

Elenco: Lídia Brondi, Louise Cardoso e Ligia Diniz