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O inventivo Candeias

Valêncio Xavier

 
A herança
 
Convite Meu nome é Tonho.
 
Marmita e Marajá (Jairo Ferreira) em
O vigilante.

 

Conheci Ozualdo Candeias através do cantor lírico, ator e produtor de programas de televisão, Túlio de Lemos. Ele fizera o papel do fantasma do pai de Hamlet no filme A herança (1971), primeira versão brasileira em cinema de uma peça de Shakespeare. Túlio dizia: “Se minha vida valeu para alguma coisa foi por ter feito um pequeno papel no filme A herança, de Ozualdo Candeias”. Então fui ver o filme, que não conhecia, e entendi porque Túlio dissera aquilo.

Há pouco recebi dos Estados Unidos o DVD Silent Shakespeare, que traz sete filmes mudos dos Estados Unidos, Inglaterra e Itália, adaptados de sete peças de Shakespeare. São filmes primários, e os diretores só puderam dar um pouco de tom shakesperiano com os letreiros, como era comum na época. Em A herança, Candeias vai por outro caminho, não há diálogos no filme, somente sons ligados à expressão dos personagens e inteligentes movimentos de câmera e a perfeita direção. Isso torna o filme uma obra-prima do cinema.

Lá por meados dos anos 80, um senhor de Curitiba, que não lembro mais o nome, ia para um seminário internacional sobre Shakespeare, em Elsinore (cidade onde se passa a ação de Hamlet), na Dinamarca. Fiz com que levasse A herança em vídeo, para exibição no seminário. Ele levou e, lá, A herança foi considerado o filme mais fiel a Shakespeare em toda a história do cinema. Ficaram com a cópia em vídeo para mais exibições na Dinamarca, inclusive pela televisão. Creio que isso mostra bem a qualidade dos filmes de Candeias.

Em 1991, quando eu era diretor do Museu da Imagem e do Som de Curitiba, realizei uma mostra de filmes baseados em peças de Shakespeare. Antes de cada exibição, uma professora da Cultura Inglesa falava sobre cada peça. Terminada a mostra, fiz uma enquete para que fosse escolhido o melhor entre todos os exibidos. Novamente A herança foi considerado, inclusive pela professora inglesa, como o melhor filme shakespeariano da série.

E é bom lembrar que A herança recebeu diversos prêmios, entre eles o de melhor diretor no V Prêmio Air France de Cinema, RJ, em 1971, e o Prêmio APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1972. Também bastante premiado foi A margem – Prêmio Governador do Estado de São Paulo e Prêmio Instituto Nacional de Cinema, ambos em 1967, entre outros.

A margem, com roteiro e direção de Candeias, criou um novo caminho para o cinema paulista; na verdade inventou o chamado Cinema Marginal. Como em praticamente todos os filmes de Candeias, o lado humano é o que mais importa. Os personagens são habitantes da favela às margens do rio Tietê, lutando para sobreviver. O filme segue o estilo Candeias: usar agilmente a câmera, sempre no lugar certo; e não deixar os atores apenas interpretar o papel e sim viver o personagem. E, em todos os seus filmes, os personagens são gente do povo. Basta lembrar Meu nome é Tonho (1969): um menino do campo raptado por ciganos, que ao crescer não se acha mais. Aopção ou As rosas da estrada (1979-81) é sobre pobres coitadas que ficam na beira da estrada esperando que alguém as leve. O vigilante (1992-3) trata dos pobres que largam a terra natal para buscar o futuro em outro lugar, e com isso só aumentam a própria miséria.

Em 1968, Candeias fez cinco curtas-metragens filmados por ele em cinco países da América do Sul. Abrangiam Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Esses curtas coloridos, que estiveram perdidos e depois foram resgatados, dão uma visão carinhosa mas realista desses países e principalmente de seu povo. Há momentos brilhantes como as filmagens em Assunção, capital do Paraguai, à beira do rio Paraná, e a parte que mostra a vida dos habitantes às margens do Lago Titicaca ganhando a vida com a pesca no lago. E incrível é a parte que mostra o maior contrabandista de cocaína da América do Sul, Suarez vivendo tranqüilamente, muito respeitado em seu país, Colômbia. Mais uma vez Candeias acerta nos filmes que faz.

Pessoalmente conheci Candeias em meados dos anos 70, quando existia a Cinemateca de Curitiba, que eu criara e dirigia. Ele viera acompanhar a mostra de seus filmes organizada ali. Ficamos amigos, e sempre que ele vinha a Curitiba ficava hospedado na minha casa. Em 1976, o desenhista e gravurista curitibano Poty (Potyguara Lazzarotto) fez um conto gráfico chamado A visita do velho senhor (o título é uma referência ao filme francês A visita da velha senhora). Candeias estava em Curitiba, e o convenci que aquilo daria um ótimo curta-metragem; ele concordou e filmou com atores daqui, o José Maria dos Santos e a Marlene Araújo. É a história de um sujeito já velho que vai transar com uma prostituta e passa a navalha nela, matando-a, mas que, mesmo morta, abre a porta para o freguês ir embora. Esse curta foi exibido com sucesso em festivais. Nos créditos do filme estou como co-diretor: bondade de Candeias, fiz apenas a produção.

Depois de alguns anos, na década de 80, Candeias fez outro curta-metragem em Curitiba, Sr. Pauer ou Mister Power, em cores. A produção foi da Cinemateca de Curitiba, o argumento foi meu. Conta a história de um homem rico que, numa greve de motoristas que deixa a cidade sem ônibus, monta numa carrocinha e obriga as mulheres a puxá-la como se fossem cavalos. Candeias mudou o que tinha que mudar, e saiu um belo curtametragem. Já no começo dos anos 90, fez a fotografia de um vídeo que dirigi, sobre as pinturas rupestres do Paraná: o título do vídeo é este mesmo, Pinturas rupestres do Paraná. Nele, Candeias deu todo seu toque especial de fotografia, o que transformou o documentário num belo filme.

Ozualdo Candeias é assim. Fazendo filmes bem pessoais e bem brasileiros, é um dos cineastas mais inventivos de toda a história do cinema.