Portal Brasileiro de Cinema Personagens antípodas
Personagens antípodas Alexandre Agabiti A encarnação do Mal Com suas aventuras violentas e “abracadabrantes”, o personagem Zé do Caixão estabeleceu empatia afetiva com o cotidiano e o imaginário coletivo das camadas menos favorecidas da população brasileira. Entre o começo da década de 60 e o fim da seguinte, Zé do Caixão instalou- se no imaginário popular a ponto de forjar uma reputação mítica. O personagem se transformou ao longo do tempo, de um filme a outro e nos shows de televisão e teatro, sem, contudo, perder seus traços fundamentais, como os mitos clássicos. O imaginário popular logo capturou Zé do Caixão, que passou a ocupar lugar cativo no universo das narrativas fantásticas da tradição oral – e mesmo na literatura de cordel, gênero popular por excelência, cujos relatos apresentam com freqüência temas e personagens legendários. Tal como uma figura mítica, Zé do Caixão tornou-se um “bem comum”, do qual todos se apropriam, e conquistou um lugar no panteão de figuras fantásticas da cultura brasileira ao lado de figuras como Saci Pererê, Boitatá, Mula-sem-Cabeça e Curupira, de estatuto mítico inegável. Os temas caros ao personagem fun- dam-se na morte, que ocupa o centro de suas ações e especulações. Zé tem verdadeiro fascínio por questões para as quais não há respostas, como o sentido da vida e da morte, a existência ou inexistência do além-mundo e do sobrenatural; questões estas que revelam também o tema do sagrado. Tal temática é comum a uma boa parte da mitologia clássica, o que contribui para dar substrato mítico ao personagem. Zé do Caixão combina um vasto con- junto de características incorporadas de outros universos. O exame de seus traços físicos, psicológicos e comportamentais permite mostrar suas relações com personagens de outras narrativas, pertencentes a diferentes estratos culturais. As quatro principais figuras que se impõem na análise de Zé do Caixão têm dimensão mítica: o vampiro; o doutor Frankenstein, o sábio do romance de Mary Shelley; Don Juan, o libertino que foi objeto de um sem-número de obras; e Exu, divindade das religiões afro-brasileiras. Todas essas figuras estão profundamente implicadas com o sobrenatural e o fantástico. A primeira delas, o vampiro, tem suas origens na Grécia Antiga e foi absorvida por culturas européias e asiáticas até chegar à literatura. A segunda e a terceira, Frankenstein e Don Juan, vieram da literatura, de onde penetraram, assim como o vampiro, na cultura de massa – domínio a partir do qual Mojica as assimilou. A quarta, o Exu, faz parte da cultura popular brasileira. Tais figuras pertencem a duas tradições: a das convenções do cinema fantástico e a da religião popular, temas fundamentais no universo do cineasta. O vampiro e o doutor Frankenstein foram incorporados, provavelmente, tendo como modelo filmes como Drácula (Tod Browning, 1931), feito a partir de uma peça teatral inspirada no romance homônimo de Bram Stoker, e Frankenstein (James Whale, 1931), adaptado do romance de Mary Shelley. Obras fundamentais do cinema fantástico, ambos os filmes deram origem à série de produções que vulgarizaram os mitos até esvaziá-los, convertendo-os em estereótipos. Mas Zé do Caixão vai além da absorção dos atributos diluídos em clichês. Ele não se confunde com os dráculas e doutores frankenstein saídos da confusão de mitos comuns à maior parte da produção de filmes fantásticos dos anos 60 e 70, principalmente italianas, espanholas e inglesas, caracterizadas pela acumulação grosseira e contraditória de atributos, o que configura uma verdadeira regressão em relação às matrizes. Zé não é uma redução, uma paródia de seus modelos: ele tem certa metafísica própria que lhe confere sentido e densidade simbólica. O personagem de Mojica incorpora e transforma traços dessas quatro figuras, mas a mistura fragmentada apresenta discrepâncias que afastam Zé de seus modelos. O contexto cultural do personagem, o Brasil dos anos 60-70, não tem nada em comum com os contextos do vampiro e do doutor Frankenstein. Zé não é um mortovivo nem um bebedor de sangue. Também não é um sábio, como o doutor Frankenstein, embora tente provar “cientificamente” as “teorias” que sustenta, nem um sedutor como Don Juan, cujo único objetivo é acumular conquistas amorosas; tampouco é um devoto ou ersatz de Exu. Seu aspecto físico se baseia na iconografia vampírica. Veste-se de preto, adornado com capa e cartola, acessórios que lhe conferem ar aristocrático. Capa e cartola também remetem a Exu, pois fazem parte de algumas representações da divindade. Direto e bestial como o vampiro, Zé do Caixão é tido como encarnação do Mal pelos camponeses da cidadezinha onde mora, que o associam ao demo. Em um pesadelo de Esta noite encarnarei no teu cadáver, Zé se vê como o diabo. Em Drácula, o vampirismo é metáfora do Mal absoluto, e o conde sanguinário traz o diabo no próprio nome (Drácula deriva do romeno drak, que significa “diabo”). Zé também tem o demônio inscrito em seu nome, Josefel Zanatas. Se Josefel é resultado da justaposição de “José” e “fel” – designando metaforicamente o ódio característico do personagem –, Zanatas é “Satanaz”, grafia antiga de Satanás, de trás para frente. As unhas enormes do personagem também remetem ao vampiro, precisamente a Nosferatu, o vampiro da primeira adaptação do romance de Stoker para as telas, do filme Nosferatu – uma sinfonia do terror (1922), de F.W. Murnau. Além disso, a personalidade de Zé do Caixão se assemelha à do vampiro. Como este, o protagonista de Mojica apresenta uma plêiade de sentimentos excessivos: ódio, cólera, desdém, perversidade. O tratamento cinematográfico dos olhos e do olhar aproxima ainda mais os dois personagens. A fixidez do olhar revela faculdades hipnóticas, que são enfatizadas quando – diante de uma vítima – os olhos se injetam de sangue, característica emprestada ao repertório do vampiro. O caixão é mais um elemento a relacionar os dois: o vampiro passa o dia dentro de um esquife, objeto cotidiano para Zé, dono de uma funerária. As referências de Mojica para interpretar o papel vêm dos vampiros do cinema, em especial de Bela Lugosi e Christopher Lee. Do ator húngaro, incorporou a expressividade facial, a ênfase teatral próxima da caricatura, reforçada por primeiros planos do rosto, que valorizam os poderes do olhar. Do inglês, adotou a agressividade feroz, os movimentos corporais bruscos e o contato físico violento que estabelece com as vítimas. A “filosofia” de Zé do Caixão é um arranjo simplista, extravagante e contraditório de idéias insólitas. Ela opõe dois valores: de um lado instinto e Natureza, de outro sentimentos como amor, piedade, medo, remorso. Não é inoportuno recordar que o vampiro também desdenha dos sentimentos. A dicotomia entre instinto e sentimento está na base da metafísica de Zé, que defende o primado dos instintos na determinação dos comportamentos humanos, considerando sentimento e superstição manifestações de inferioridade. Segundo ele, o homem inteligente deve ter o “instinto domesticado pela razão”, idéia quimérica que traz embutida uma contradição. O personagem poderia perfeitamente adotar a divisa “a sobrevivência é do mais forte”, idéia que se cristaliza nos ideais de perfeição e de homem superior, os quais ele reivindica constantemente. Zé estima que sua superioridade é inata, e ele se proclama fundador de uma nova era da humanidade. Individualista, o personagem rejeita e viola regras morais e sociais. Em longas diatribes blasfematórias, afirma que a religião veicula interdições e superstições que se colocam entre o homem e o desejo, impedindo-o de viver livremente: Natureza e Cultura estão em permanente confl ito. Zomba das crenças dos camponeses e deleita-se em aterrorizá-los moral e fisicamente com suas próprias superstições. Apenas as crianças escapam à sua fúria. São vistas como criaturas puras, que ao crescer são corrompidas pelas crenças e pelos sentimentos. Megalomaníaco, o personagem criado por Mojica tem a obsessão da imortalidade, valor que compartilha com o vampiro. Mas para Zé a imortalidade significa eternizar sua força superior na continuidade genésica da vida, ou seja, por meio de um filho. Os dois primeiros filmes com o personagem giram em torno da busca pela “mulher perfeita” que lhe proporcionará esse herdeiro. O poder de Zé se funda na superioridade inata de seu sangue, e transmiti-lo a um filho celebrará a sua glória. A afirmação da potência e o ideal de homem superior são duas concepções caras ao doutor Frankenstein, que deseja criar uma nova espécie a partir de um ser moral e fisicamente superior, invulnerável, que daria origem a uma humanidade “perfeita”. Se no filme de Whale o cientista ingênuo e sonhador do romance dá lugar a um gênio do mal com sede de poder, nas versões dirigidas por Terence Fischer – no fim dos anos 50 – o personagem adota sua configuração mais extremada. Transforma-se em um cínico orgulhoso, sem escrúpulos, que usa os mais fracos para seu benefício. Convencido de seus poderes, despreza os valores da sociedade e faz tábula rasa da moral e da ordem social de seu tempo. Os pontos em comum com Zé do Caixão tornam-se numerosos. O mito de Frankenstein e o personagem de Mojica apresentam a célebre dicotomia entre criador e criatura, que caracteriza o tema do duplo, um dos motivos do cinema e da literatura fantástica por excelência. No romance de Shelley, a criatura é uma projeção simbólica do inconsciente do criador. Quando inventa a criatura, o doutor libera seus instintos mais primitivos, a parte maldita de seu psiquismo. A criatura não tem nome no livro nem no filme de Whale. No segundo filme inspirado no romance, A noiva de Frankenstein (James Whale, 1935), a criatura assume o nome do criador, e o processo de identificação se completa. Na obra de Mojica, a tensão entre criador e criatura é igualmente crucial e assume várias configurações. Ela muitas vezes ultrapassa os limites da ficção e invade a realidade. Desde os primórdios, Mojica gosta de incorporar Zé do Caixão à sua vida real em entrevistas, shows de teatro e televisão, adotando as roupas e inflexões de voz do personagem. A interpenetração de criador e criatura está inscrita até em seus nomes, José e Zé, um pouco como no caso de Frankenstein. Muitos brasileiros ignoram o nome de Mojica, mas o conhecem como Zé do Caixão. Se Zé sai da ficção e vai para o mundo real do cineasta, este entra na ficção para se defrontar com a criatura. Em O despertar da besta (Ritual dos sádicos), um personagem confunde o cineasta com o protagonista, que desfaz o equívoco com sarcasmo. Tal modalidade de desdobramento se desenvolveu em filmes posteriores, como Exorcismo negro e Delírios de um anormal, produções que trabalham o tema do duplo que vem importunar seu proprietário e escapa ao controle deste, motivo clássico do cinema fantástico desde O estudante de Praga (Stellan Rye, 1913). Em Exorcismo negro, Zé continua sádico e violento, mas apresenta traços que contrariam sua configuração original: ele se identifica completamente com o diabo, cuja existência negava nos filmes anteriores, e dispõe de poderes sobrenaturais. Mojica também aparece “desnaturado”, na pele de um cineasta culto e respeitável. O conflito entre eles é inevitável: num pesadelo, Mojica é obrigado a enfrentar Zé e tenta exorcizá-lo. O duelo termina de forma ambígua: o criador parece ter vencido a criatura no sonho, mas depois uma sombra e um reflexo – emblemas do duplo e do desdobramento – de Zé sugerem que a criatura está presente. Em Delírios de um anormal, o reflexo assinala novamente a impotência do criador face à criatura. O motivo do duplo se manifesta de outras formas no cinema de Mojica. Em “Ideologia”, episódio de O estranho mundo de Zé do Caixão, Zé aparece um tanto diferente em seu aspecto, na pele do professor Oaxiac Odez, nome estranho que nada mais é do que Zé do Caixão de trás para frente, como se estivesse refletido em um espelho. O desdobramento do personagem é ratificado pela imagem espectral. O desdobramento de Zé aparece em dois outros filmes. Em À meia-noite levarei sua alma, durante um delírio, o personagem vê uma cena em que está em um caixão levado por almas penadas. No romance As almas do purgatório (1834), de Merimée, uma versão do mito de Don Juan, o herói tem uma visão na qual participa de seu próprio enterro. Segundo Otto Rank, em Don Juan et le double (Payot, 1992), o tema do duplo na obra de Merimée deve ser visto como um mensageiro da morte, e prefigura o fim horrível do sedutor. No filme de Mojica, o desdobramento assume igual significado. Em Esta noite encarnarei no teu cadáver, Zé tem um pesadelo em que está no inferno, onde se depara com o diabo, que tem a mesma aparência do personagem. Zé do Caixão compartilha atributos com Don Juan, em especial com aquele estabelecido pelos protótipos do século XVII, cuja primeira versão é O burlador de Sevilha (1630), atribuída a Tirso de Molina. Ambos os personagens estão à margem dos demais indivíduos, em guerra contra a sociedade e têm uma considerável força de auto-afirmação. Os aspectos mais claros se relacionam à lubricidade: a mulher é o grande objeto de desejo de ambos, mesmo respondendo a motivações diferentes. Don Juan é um sedutor em busca unicamente do gozo sexual. Zé tem o mesmo cinismo galante para com as mulheres, mas os prazeres do sexo no seu caso estão sempre relacionados à reprodução. Para atingir seus objetivos, ambos estão dispostos a tudo: matam amigos e inimigos; traem, rap- tam, brutalizam e envenenam as mulheres. No entanto, mais do que atentar contra as leis humanas, o que move o Don Juan da tradição barroca é a transgressão das leis divinas. Isso fica claro no ultraje aos mortos, por meio daquele que os representa: o convidado de pedra. O libertino viola o sagrado, perturba a paz dos mortos e se recusa a arrepender-se. Como Don Juan, Zé investe contra a religião e os mortos. Em À meia-noite levarei sua alma, invoca as pessoas que matou, assim como o convidado de pedra havia sido uma vítima de Don Juan. Zé desafia os mortos a se levantar das sepulturas e se vingar. O gesto infringe um interdito fundamental, a separação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, assim como faz Don Juan em seu convite à estátua. Na peça atribuída a Tirso de Molina, Don Juan ouve conselhos de penitência e presságios de morte, mas desdenha deles. De modo análogo, Zé ridiculariza recomendações desse tipo. O Don Juan barroco não conhece arrependimento nem expiação, mesmo em sua queda. Zé também não, com exceção do final de Esta noite encarnarei no teu cadáver, em que o persona- gem morre afogado em um lago, vituperando contra as forças do além. A cena foi vetada pela censura, que exigiu um final diferente. Mojica mudou a montagem da cena e alterou as falas do personagem, que morre dizendo crer em Deus. O novo final é semelhante ao desfecho de outra versão do mito do libertino: Don Juan Tenório (1844), de José Zorrilla. Neste caso, o ímpio morre, mas se salva por meio de uma conversão in extremis. Muitos aspectos aproximam Zé do Caixão de Exu. No candomblé, Exu é o elemento dinâmico de tudo o que existe: ele transforma, impulsiona, faz crescer. Considerado impulsivo e irascível, Exu é perverso e impetuoso. Extrovertido e narcisista, afirma o princípio da reprodução, da atividade sexual. Traços de caráter como esses também estão presentes em Zé do Caixão. Outras características da divindade remetem ao personagem de Mojica, como os olhos incisivos, o olhar penetrante, o cinismo, o gosto pela intriga. Na África, Exu foi comparado ao diabo pelos primeiros missionários, escandalizados com as referências fálicas das representações da divindade. Os sacrifícios sangrentos, a cor vermelha e a relação com o fogo serviram perfeitamente para o sincretismo com o diabo. No Brasil, tal assimilação é mais intensa em crenças distanciadas do candomblé, culto este mais fiel às raízes africanas. Em certas correntes da umbanda, Exu é um espírito das trevas, próximo do diabo cristão. A absorção de traços físicos e comportamentais atribuídos a Exu mostra o enraizamento de Mojica nos valores mágicos, instintivos e irracionais do imaginário primitivo, muito presentes no espírito de seu público. As referências a Exu aproximam Zé deste público, fornecem um arquétipo reconhecível e veiculam, nos filmes, todo um universo religioso – mesmo que este seja com freqüência vilipendiado por Zé. Em À meia-noite levarei sua alma, Zé pisoteia um despacho. Em Exorcismo negro ele já não é mais o malvado agente funerário à procura da mulher ideal. Transforma-se em equivalente do demônio, em encarnação de Exu. A natureza compósita de Zé do Caixão resulta do agenciamento de traços emprestados de três mitos que o cinema ajudou a propagar – o vampiro, o doutor Frankenstein e Don Juan – e de um mito da cultura popular brasileira, Exu. Nenhum dos quatro prevalece sobre os demais: seus traços se combinam, se completam no personagem de Mojica. O procedimento do cineasta está mais próximo do amálgama, da fusão de elementos díspares, que da colagem, da justaposição. Trata-se de uma operação intertextual, entendida como absorção e transformação de outros textos. Nessa perspectiva, é possível afirmar que Zé do Caixão é um personagem “antropofágico”, no sentido estabelecido pelos modernistas. Com toda a liberdade, Mojica se apropria de modo “canibal” das quatro figuras, ultrapassando, como os modernistas, a oposição maniqueísta entre cultura estrangeira e cultura brasileira tradicional. Mojica conseguiu ordenar as dimensões local e universal, em uma abordagem que leva em conta a crescente presença da indústria cultural no Brasil dos anos 60 e 70. Tal abordagem intertextual não se limita ao personagem, mas também está presente na singular mise-en-scène do cineasta. O messias de pacotilha Com a interdição de O despertar da besta (Ritual dos sádicos) pela censura, Mojica resolveu deixar Zé do Caixão de lado por um tempo, temendo novas exprobações dos censores. Em seu lugar, criou Finis Hominis, protagonista de um filme homônimo, de 1971. Como Zé, Finis desenvolve a obsessão de Mojica pela religião. É carismático como o primeiro, mas também é o inverso dele: herói positivo, pacífico, Finis tenta restabelecer a justiça ajudando doentes e infelizes. Alcança a reputação de milagroso e logo torna-se uma espécie de messias. Começa sua aventura saindo do mar, nu, em um nascimento simbólico. Perambula e vai curando os necessitados que encontra pelo caminho, às vezes repetindo milagres narrados na Bíblia, atualizados de modo paródico. Frio e distante, realiza tais prodígios com aparente indiferença. Finis tem raízes em dois personagens com inclinações místicas que Mojica havia interpretado pouco tempo antes em O cangaceiro sem Deus (1969), de Osvaldo de Oliveira, e O profeta da fome (1969), de Maurice Capovilla. Como tais figuras, Finis mergulha no misticismo popular brasileiro, pródigo em anacoretas e taumaturgos legendários. O personagem usa turbante e roupas de inspiração hindu, o que contribui para estabelecer uma aura mística de pacotilha. Seu nome se deve a circunstâncias no mínimo extravagantes: sedento, entra em uma igreja e bebe, com inocência, o vinho da missa. É então surpreendido pelo padre, que grita “Finis Hominis!” (o fim do homem), Cena do filme Quando os deuses adormecem (1971-72) em esconjuro. O uso da expressão latina finis hominis remete ao Tropicalismo, que caçoava de tais expressões. Apesar de ser celebrado pela mídia, Finis nega ter poderes sobrenaturais e deixa a cidade, não sem fazer uma última pregação: uma paródia do sermão da montanha. O filme termina com um coup de théâtre: Finis retorna, incógnito, ao hospício de onde havia escapado, numa referência sarcástica a O gabinete do doutor Caligari (Robert Wiene, 1920). No contexto de autoritarismo e violência da época, apenas um demente poderia crer na harmonia e no entendimento entre os homens. O personagem apareceu em outro filme, Quando os deuses adormecem, realizado em condições ainda mais precárias do que o primeiro. Finis continua a fazer discursos moralizadores, mas não opera milagres. A imprensa já não se interessa por ele, sua dimensão messiânica se esvai. Finis torna-se um simples vingador dos inocentes, um justiceiro. Sem a ressonância de Zé do Caixão, criado no calor da urgência, Finis nunca teve a mesma popularidade e desapareceu em seguida. |