Portal Brasileiro de Cinema  Um arranjo prosaico e extravagante

Um arranjo prosaico e extravagante

Alexandre Agabiti

 

Desmedida, horror e brutalidade são traços distintivos das rústicas fábulas cinematográficas de José Mojica Marins, as quais abordam temas como o sobrenatural, a violência e as pulsões sexuais. Autodidata, Mojica filma de maneira intuitiva, sem esconder as deficiências técnicas e a falta de recursos. Sua mise-en-scène combina pretensão, grandiloqüência, precariedade material e inépcia, o que torna seu “estilo” único e atraente. Os transbordamentos estão por todo lado: nos cenários grosseiros; na fotografia suja; nos diálogos inverossímeis que mesclam uma retórica ao mesmo tempo pomposa e simplória; no amadorismo dos atores, que adotam um tom declamatório, como se recitassem suas falas.

A falta de comedimento prossegue nas situações excessivas propostas pelos filmes, nos quais canibalismo, mutilações, blasfêmias e sadismo – para dar apenas alguns exemplos – são moeda corrente. Visto sob esse prisma, o cinema de Mojica parece algo totalmente artificial. No entanto, ele mantém uma relação estreita com o real, pois os excessos, apresentados muitas vezes com uma ingenuidade desconcertante, surgem com freqüência em situações caracterizadas por pretensões de verossimilhança. Não se trata de “realismo” ou de “objetividade”, mas de uma insinuação do real por trás do artifício. Isso se manifesta na caracterização prosaica, quase naturalista, de certos espaços, situações ou personagens. A sinceridade que transparece nos filmes os aproxima, às vezes, do documentário. Os atores parecem representar a si mesmos, sensação reforçada pela espontaneidade do sotaque e pelos erros de sintaxe. A coexistência paradoxal de artificial e natural, convenção e autenticidade, imaginação e realidade permite dois modos de expressão. O primeiro é o choque, caro aos surrealistas, em que a anormalidade, o excesso, o sonho, o irracional ou o sobrenatural surgem em um contexto estável e corriqueiro. Não por acaso, alguns críticos apontaram semelhanças entre o cinema de Mojica e o de Luis Buñuel, analogia que, no entanto, não esgota a questão. O contexto banal, bem como a condição social desfavorável da maioria dos personagens, está muito próximo da realidade cotidiana de grande parte do público dos filmes de Mojica. Familiar ao espectador, o contexto contribui para aumentar o medo no público, visto que é a proximidade com o real que engendra o medo. O segundo modo de expressão é a comicidade involuntária, outra das características distintivas do cinema de Mojica. Em “Vie des fantômes le fantastique au cinéma”(Cahiers du Cinéma, 1995, p. 46), Jean-Louis Leutrat comenta que “o prazer provocado pelo cômico consiste em entrever o real tal como ele se mostra no pano de fundo, aparecendo furtivamente atrás do fracasso do ‘real’ que pretendia representar”. Muitas vezes, nos filmes de Mojica, os gestos, as expressões ou reações dos atores, animados por uma sinceridade pueril, por um bom senso “naturalista”, apresentam uma defasagem em relação ao contexto caprichoso, às extravagâncias da ação. Essa discrepância entre pretensão e performance enseja uma leitura mais distanciada, que geralmente provoca o riso. A fragilidade dos atores pode instalar o cômico no meio do trágico, tendo como ponto de partida uma simples palavra, uma frase dita um pouco rapidamente ou com uma entonação defasada em relação ao contexto.

Tanto o choque como o humor involuntário desvelam o real e fazem as delícias e misérias de uma mise-en-scène totalmente original, que designa o tempo todo a precariedade do cinema brasileiro, traço também evidenciado pela “estética da fome”, que norteou os primórdios do Cinema Novo, e pela “estética do lixo”, cara ao Cinema Marginal – ambas as abordagens surgidas nos anos 60, portanto contemporâneas aos filmes de Mojica.

A mise-en-scène inventada pelo cineasta paulista antecipa e leva ao limite as idéias centrais da primeira fase do Cinema Novo (enunciadas por Glauber Rocha em 1965, no célebre manifesto “Uma estética da fome”): um cinema distanciado da indústria e de seus cânones estéticos, assumindo a precariedade técnica e material como conseqüência inelutável da miséria brasileira. No entanto, ao contrário das obras do Cinema Novo, os filmes de Mojica não têm componentes intencionalmente políticos. Sua abordagem é outra: a partir do universo codificado do cinema fantástico, o cineasta estabelece uma representação original de certos aspectos da cultura e da realidade brasileiras da época. Trata-se de uma representação intuitiva, dotada de poesia em estado bruto na qual sublime e grotesco se misturam.

Abolindo fronteiras e hierarquias, os filmes absorvem e transformam uma grande variedade de referências culturais heterogêneas, traço pouco usual no cinema de gênero. Aqui reside a característica mais notável da originalidade dessa mise-en-scène: Mojica cruza os clichês do cinema fantástico, que revelam o que Roger Caillois, em “Au coeur du fantastique”, ensaio de Cohérences aventureuses (Gallimard, 1976), denomina de “fantástico de parti pris”, com referências emprestadas da cultura popular, das religiões afro-brasileiras, de temas da realidade nacional da época, da cultura de massa e da cultura erudita. Assim como os modernistas de 1922, Mojica se apropria de dados culturais heteróclitos, deslocados de seu contexto original, para construir sua identidade.

Sua mise-en-scène foi uma referência impor tante para os jovens realizadores do Cinema Marginal na elaboração da “estética do lixo”, re visão radical de certos aspectos da “estética da fome”. No manifesto de Glauber, a violência estilística é considerada uma conseqüência legítima da fome e do subdesenvolvimento. Os “marginais” intensificaram as implicações entre o cinema e a fome, cultivando deliberadamente tudo o que pudesse traduzir a condição miserável do cinema brasileiro por meio de uma estética que fazia o elogio do feio, do ruim, do errado, do lixo. Aspectos como a imitação malfeita do cinema norte-americano – característica da chanchada, por exemplo –, a insuficiência de meios e a inabilidade técnica, expostos sem inibições por Mojica, e todo o arsenal de excessos que marca sua mise-en-scène, e que remetem ao univer so do baixo, foram percebidos pelos cineastas “marginais” como emblemas da pobreza brasileira, dados intrínsecos da realidade, indispensáveis à compreensão de suas contradições. A “estética do lixo” definiu um estilo que buscava chocar, designando raivosamente o descompasso entre a condição periférica do Brasil em relação aos centros industrializados. Tais deficiências foram assimiladas voluntariamente pelos “marginais” e erigidas como recurso expressivo, em estratégia de agressão ao “bom gosto”, capaz de expressar as múltiplas carências do subdesenvolvimento latino-americano. Tomaram uma dimensão provocadora, tornando-se um dos componentes da expressão da revolta desses cineastas diante da conjuntura política e cultural da época, marcada pelo endurecimento da ditadura militar iniciado no fim de 1968.

A violência sanguinária, o dilaceramento corporal, os gritos lancinantes e outras abominações presentes nos filmes de Mojica foram retomados pelo Cinema Marginal, remetendo diretamente ao clima político da época, caracterizado pela repressão e pela proximidade real da tortura. Nas obras de Mojica, o horror pode ser visto para além da encenação da abominação, pois torna visível o horror existente na realidade sinistra dos anos 1960-70.

O cinema de Mojica se opõe ao cinema industrial como a tática se opõe à estratégia, no sentido definido por Michel de Certeau, em L’invention du quotidien 1. Arts de faire (Paris, Gallimard, 1990, p. XLV). Os procedimentos empregados pelo cineasta são eminentemente táticos, práticos. Sua lógica se articula com a conjuntura, com o senso de oportunidade: são os “modos de fazer”, segundo a expressão de Michel de Certeau. Esses “modos de fazer” permitem que um realizador sem recursos nem formação se aproprie das técnicas cinematográficas e as empregue a seu modo. Mojica cria suas próprias práticas significantes, que determinam uma expressão cinematográfica pessoal, reconhecível no “fraseado” tosco, na inventividade artesanal. É oportuno lembrar que esse gênero de apropriação é raríssimo no cinema, forma de expressão complexa que demanda meios materiais custosos.

Certeau pensa a cultura popular a partir do conceito de tática, considerando-a como uma estética de “golpes” e uma ética da tenacidade. A cultura popular é vista como “arte de fazer”, um modo de apropriação de elementos culturais impostos pelas elites. Desprovido de estratégia, sem modelos eruditos, o artista popular usa de modo criativo o que tem à disposição para construir suas representações. Assim, Mojica se vira com o que tem à mão e organiza seu discurso a partir de um ponto de vista baseado em suas próprias referências. Por conseguinte, ele se dirige a seu público, platéia inculta em sua maioria, com uma espontaneidade jamais vista no cinema brasileiro. Não há distância entre eles: autor e espectador olham-se em pé de igualdade.

A análise a seguir não pretende discutir os filmes como um todo, mas apontar as principais características da mise-en-scène por meio do exame de algumas cenas e da intertextualidade que estas suscitam.

À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA (1963-64)

A narrativa do primeiro filme fantástico de Mojica é organizada de modo convencional, descrevendo a ascensão e a queda do per sonagem Zé do Caixão. O arranjo usual dos fatos contrasta com a liberdade do tom com que eles são expostos. O registro é direto e brutal, desde o prólogo do filme, no qual Zé faz um discurso intimidante, seguido pelo monólogo da bruxa, que adverte o público sobre o conteúdo do filme, remetendo a espetáculos de circo e às bruxas de Macbeth. Os dois discursos implicam o espectador e designam o filme como representação. As ações de Zé são uma sucessão de transgressões. A primeira delas é consumir carne de cordeiro na Sexta-feira Santa, em uma situação especialmente ultrajante: diante de uma procissão que passa em frente à sua janela. O tipo carne nada tem de fortuito: o cordeiro remete ao cordeiro de Deus, que representa o Cristo como vítima sem mácula. A audácia vai ainda mais longe, pois Zé do Caixão oferece a carne ao padre.

Na banda sonora, novos atentados aos princípios católicos: os fiéis entoam um hino que repete a expressão “Hosana”, grito de júbilo completamente fora de contexto em uma celebração de Sexta-feira Santa, assim como os sinos da igreja a badalar, o que do ponto de vista litúrgico constitui nova aberração.

Essas afrontas não são de responsabilidade do personagem, mas do narrador, que afirma a mesma insolência deste.

A cena tem uma composição espacial notavelmente eficaz. Zé está em primeiro plano, quase de perfil. No eixo da câmera estão a janela e o cortejo. O protagonista está no interior, na penumbra; a procissão está no exterior, em um lugar iluminado. A oposição entre esses dois espaços – interior-pecado; exterior-virtude é realçada pela composição do plano, que os coloca em relação de frontalidade. Colocada em leve plongée, a câmera estabelece uma perspectiva que situa o personagem principal acima da procissão, reforçando, a partir de dados visuais, a força do protagonista e de seu gesto transgressor.

Essa profanação do sagrado lembra um precedente importante na cultura brasileira: o happening que o pintor e arquiteto Flavio de Carvalho realizou em 1931, ao percorrer a procissão de Corpus Christi no sentido inverso, com um chapéu na cabeça.

Forma pouco freqüente no cinema popular, o plano-seqüência é utilizado por Mojica em duas ocasiões, e por razões práticas, pois dispunha de muito pouca película. O segundo plano-seqüência, de cinco minutos, mostra um perfeito domínio da tensão dramática. Depois de matar a terceira vítima, Zé do Caixão está em casa. Uma tempestade se aproxima e o deixa inquieto. Zé passa a ouvir as vozes de suas vítimas e entra em pânico. A decoração da casa, cheia de objetos fúnebres, ressalta a proximidade com o mundo dos mortos. O protagonista começa a responder às vozes, que deixam de ressoar, e constrói um longo discurso, durante o qual controla o sentimento de medo e passa à ofensiva. A interpretação do ator explicita essa mudança de comportamento, pois os movimentos bruscos e as expressões faciais vagamente expressionistas dão lugar a gestos mais incisivos, exagerados, de uma eloqüência próxima da ópera – gênero sugerido pelo canto coral que ocupa uma parte da banda sonora. Essa tonalidade excessiva é tomada por uma gravidade solene – que sugere em certos momentos o registro do teatro shakespeariano, evocado também pela presença das vozes dos fantasmas –, pela excessiva dramaticidade da situação e pela escolha do monólogo como forma expressiva. Durante esse discurso, Zé do Caixão vai do pavor à euforia. Termina o monólogo lançando um desafio ao diabo, depois de uma espiral de blasfêmias. Deita-se em um baú, de pontacabeça, deixando pender a capa, como as asas de um morcego, em referência explícita aos vampiros.

ESTA NOITE ENCARNAREI NOTEU CADÁVER (1965-66)

Continuação do filme anterior, o segundo longa com Zé do Caixão leva certos princípios de À meia-noite levarei sua alma ainda mais longe, como a incorporação de referências a uma série de temas pertencentes a domínios culturais heterogêneos. Mojica dialoga com o Inferno de Dante, a música sacra, a música popular e a erudita, com vários gêneros cinematográficos, com os símbolos católicos e com modalidades da cultura de massa, como a luta livre. Esta noite encarnarei no teu cadáver tem um ritmo menos ágil do que o filme anterior, mas isso não impede que algumas cenas estejam entre as mais fortes criadas pelo cineasta, como a figuração do inferno, uma releitura singular do Inferno de Dante.

A figuração do inferno faz parte de um pesadelo de Zé. Esse sonho terrível começa sutilmente com uma fusão, que introduz um salto de nível narrativo, em que passamos da realidade do personagem ao seu inconsciente. Zé é arrancado da cama e arrastado até o cemitério por uma figura estranha, extremamente magra, de pele escura, que lembra uma múmia sem bandagens. Situada entre o mundo dos vivos e o dos mortos, pois conserva algo da aparência humana, a múmia é a instância mediadora entre o protagonista e o inferno, entre o mundo dos vivos e o dos mortos condenados ao suplício. No cemitério, Zé é “engolido” pela terra, e um jogo de associações se põe em marcha: o buraco lembra as pinturas de Hieronymous Bosch (c. 1450-1516), nas quais as figurações da oralidade vão além da boca e se apresentam sob a forma de fendas, cavidades e cloacas; Zé chega ao inferno pelo cemitério, enquanto a múmia remete à pirâmide, a um túmulo; o inferno, com seus sucessivos círculos, como no poema de Dante, tem a forma de um funil, que lembra uma pirâmide invertida. As correspondências entre A divina comédia e o filme são numerosas. A descida aos infernos de Zé começa quando ele cai sobre a lama onde estão deitados os danados (canto VI do Inferno). Em seguida, há um terremoto (canto III), que leva Zé ao círculo seguinte; os demônios chicoteiam (canto XVIII) e cravam tridentes na carne dos pecadores (canto XXII); estes se arrastam pelos caminhos (canto XXIX); sofrem crucificações (cantos XVI e XXIII); são presos com correntes (canto XXXI); mordidos por serpentes (canto XXIV); enterrados de ponta-cabeça no fundo da gruta (canto XIX) e colocados em poços (canto XXXI).

Ao vasto repertório dantesco de tormentos, Mojica acrescenta martírios que inventou, como as marteladas na cabeça dos danados e o emparedamento dos pecadores na gruta. Os gases fétidos, o gelo e as chamas são abundantes, como no poema. Zé fica muito impressionado com o que vê, como Dante, mas segue seu périplo. No fim da seqüência, que dura cerca de doze minutos, a única rodada em cores, o diabo surge diante do visitante: ele tem a mesma aparência de Zé do Caixão e as mesmas longas unhas. Ri sadicamente das flagelações, assim como Zé fizera com suas vítimas. Inspirado numa referência histórica de pacotilha – a Roma antiga dos filmes de gladiadores –, a iconografia ligada ao diabo o associa a Nero, tido também como sádico e o mais cruel dos imperadores romanos, e do qual empresta o trono, as roupas vermelhas drapeadas como uma toga, a coroa de louros e até as uvas que devora com volúpia, como se estivesse em uma bacanal. No poema, Dante designa o diabo como imperador (canto XXXIV). Ao lado do demônio, mulheres seminuas seguram cachos de uvas, evocando cortesãs de uma orgia romana.

Esse rei das trevas é uma espécie de meneur de jeu (“mestre-de-cerimônias”) de um espetáculo macabro, à maneira de um imperador romano que dirige os combates em uma arena, condição que divide com Zé, seu duplo, que também gosta de pôr em cena o martírio de suas vítimas. Tal Lúcifer não tem nada do diabo autômato, cansado e solitário descrito por Dante: segue a linhagem dos diabos temíveis imaginados por escritores como Milton, Goethe, Byron e Baudelaire.

O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO (1967-68)

O filme é composto por três episódios. O primeiro, “O fabricante de bonecas”, tem como tema principal o olho e o olhar, motivos apreciados pelo cineasta. No filme, o olho é o meio pelo qual é realizada a intrusão do humano no inumano, tema do fantástico por excelência. Sua mise- en-scène é canônica, mas a narrativa pode ser pensada a partir de aproximações com o conto “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann, em que o olho tem lugar central. No conto, Nathanael se apaixona pela boneca Olímpia, que ele imagina ser humana. Ele é atraído pela expressão dos olhos dela, que no filme é o maior atributo das bonecas construídas pelo velho artesão. Nathanael vive perturbado por lembranças da infância, pelo medo do homem de areia, que arranca os olhos das crianças que não dormem cedo. No filme, o gesto de arrancar os olhos também está associado à idéia de punição.

No ensaio A inquietante estranheza, Freud analisa o conto de Hoffmann e recorda que a angústia de machucar ou perder os olhos é uma angústia infantil que pode perdurar no adulto. A boneca, comum ao filme e ao conto, é uma figura ligada à infância. Segundo Freud, essa angústia é com freqüência um substituto da angústia de castração, o que enfatiza a relação entre o olho e o membro viril. O filme absorve e desenvolve tais conceitos à sua maneira: o olho dos voyeurs no buraco da fechadura aproxima o órgão da visão e o genital. A mutilação dos olhos e a decapitação dos malfeitores podem ser vistos como castrações simbólicas, como um castigo ligado ao estupro das filhas do artesão.

“Tara”, o segundo episódio, revisita o amor de Quasímodo por Esmeralda, do romance O corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, com referências à Bela e a fera, de Leprince de Beaumont – na atração do disforme pelo belo –, e a Cinderela, de Perrault, no motivo do sapato per dido que vem a ser restituído pelo homem apaixonado. Tomando motivos edulcorados dessas duas fábulas ingênuas, Mojica cria um contraste insólito a partir dos desvios que introduz em seguida. Tais desvios são de caráter fetichista e necrófilo, temas nunca abordados antes pelo cinema brasileiro.

A força da cena de necrofilia, a mais impressionante do filme, em que o corcunda restitui o sapato perdido à moça, já morta e enterrada, deve-se menos ao seu caráter excessivo e mais à coexistência de afeto e perversão, ingenuidade e cor rupção: poucas coisas são mais perturbadoras do que um aviltamento cometido com ternura.

A frustração sexual do corcunda, a necrofilia, o fetichismo do pé e do sapato e as fantasias erótico-macabras em torno do vestido de noiva são temas que lembram Viridiana (1961), de Luis Buñuel. Esses empréstimos de outras obras mostram a capacidade de Mojica de articular e transformar referências. Combinando depravação e candura, o diálogo intertextual do cineasta integra dados dos contos de fadas ao seu universo pessoal, para pervertê-los. O derradeiro episódio, “Ideologia”, é um dos filmes mais violentos e blasfemos do cineasta. A seqüência de suplícios mostrada pelo professor Oaxiac Odez ao casal de convidados é especialmente repugnante. A mais atroz talvez seja a do homem torturado em um aparelho que estira seus músculos até destroçar-lhe o corpo. Como o Cristo crucificado, a vítima está sumariamente vestida e tem o corpo coberto de sangue. Alguns planos do mártir lembram a Descida da Cruz, motivo importante da iconografia cristã. A blasfêmia surge quando homens esfomeados arrancam a carne do supliciado a dentadas, consumando a ofensa à Eucaristia.

O desfile de abjeções, no qual loucura e per versidade se combinam com monstruoso sadismo, remete aos suplícios do Inferno de Dante, às pinturas de Bosch e aos espetáculos do Grand-Guignol, no século XIX – teatro do sangue derramado, de tudo o que pode ser chocante, descrevendo minuciosamente a crueldade e a devassidão. O naturalismo empírico de Mojica corresponde ao realismo cru do Grand-Guignol: ambos submetem o espectador às vertigens de uma verossimilhança provocativa, que desdenha da dramaturgia tradicional. O gosto pela participação ativa do corpo, quase onipresente nos filmes de Mojica, é outro traço essencial da tradição grand-guignolesca.

A última cena do filme, o banquete canibal, insiste na tonalidade ultrajante e apresenta outras referências cruzadas. As cabeças do casal sobre baixelas de prata lembram as cabeçastroféu de certas tribos indígenas e africanas, que degolavam os inimigos, a decapitação de São João Batista ou o quadro Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo. A expressão serena nos rostos do casal martirizado é semelhante à do santo em várias representações e à do herói da Inconfidência na pintura citada.

O banquete de Oaxiac com seus acólitos faz referência à última ceia de Cristo com os apóstolos, quando Jesus instituiu a Eucaristia. O Messias, de Haendel, na faixa sonora, reforça a identificação paródica entre Oaxiac e o Redentor, desenvolvida ao longo de todo o filme.

O DESPERTAR DA BESTA (RITUAL DOS SÁDICOS) (1969)

É o filme fantástico de Mojica mais comprometido com o real. Mostra comportamentos relacionados à contracultura e a um suposto modo de vida hippie, dados da realidade brasileira da época. Mais descritivo que narrativo, o filme é uma sucessão de fragmentos costurados por uma intriga tênue, o que dirige a atenção do espectador menos à história e mais ao que as imagens têm de concreto.

A opção pela fragmentação do espaço e do tempo deve-se em boa medida a um imperativo ligado às condições de realização do filme: como o pequeno orçamento de que Mojica dispunha o obrigava a rodar rapidamente e o impedia de ter os atores à disposição durante muito tempo, ele criou uma história constituída de vários relatos, evitando cenas com muitos atores. A narrativa é dividida em três blocos. O primeiro – mais longo – expõe o que parece ser o tema central do filme: a vida dissoluta de drogados paulistanos; o segundo, constituído unicamente por um flashback, prepara a transição para o desfecho; e o terceiro mostra as alucinações provocadas pela experiência de um psiquiatra. O bloco inicial tem uma dúzia de episódios em que o uso de drogas está diretamente relacionado a condutas sexuais heterodoxas. A sordidez e o excesso característicos do diretor estão presentes. Há ritos de carnavalização, com acentos bakhtinianos, fantasias surrealistas e figurações do abjeto que seriam retomadas pelo Cinema Marginal.

O bloco intermediário explica as circunstâncias do experimento do psiquiatra. Ele traz duas seqüências de imagens não-ficcionais: fragmentos de Quem tem medo da verdade?, programa exibido pela TV Record, em que Mojica é difamado por um júri; e uma cena da peça teatral Na selva das cidades, de Bertolt Brecht, encenada pelo Teatro Oficina. Mojica reage às ofensas que recebe no programa de TV com um discurso inflamado em defesa do seu cinema, o qual termina com a inserção da canção Aquele abraço, de Gilberto Gil, referência ao Tropicalismo e ao programa do Chacrinha. A canção desautoriza o programa da Record ao compará-lo àquele apresentado pelo animador pernambucano. Esse gesto crítico do cineasta é uma reação sarcástica à ofensiva que sofria por parte da imprensa e de setores “bem pensantes” da sociedade brasileira, escandalizados com o conteúdo agressivo de seus filmes.

O terceiro e último bloco, composto pelas alucinações dos drogados, rompe com os “efeitos de real” dos blocos anteriores, o que realça sua estranheza. Tudo é pura imaginação, livre e imprevisível. Os cenários, as cores e a bandasonora são exercícios de interpretação desenvolta da plástica psicodélica: a contracultura é “digerida” pela cultura popular.

Nas alucinações, Zé do Caixão é onipresente e tem poderes sobrenaturais, o que não acontecia nos filmes precedentes. Cada um dos quatro drogados tem um ponto de vista diferente sobre Zé, produzindo uma imagem aberta e contraditória do personagem, que muitas vezes se aproxima da imagem criada por parte do seu público. Essa perspectiva múltipla em torno de Zé do Caixão pode ser vista como uma discussão sobre o personagem e o próprio cinema de Mojica, um refinamento metalingüístico pouco comum no cinema popular.

FINIS HOMINIS (1970-71)

A manipulação da religião e da religiosidade popular pelos meios de comunicação de massa é o tema central deste filme. Feito com ainda menos recursos do que a média das produções de Mojica, Finis hominis é bastante inferior a elas no aspecto formal. A narrativa avança penosamente, episódios são alongados por um acúmulo de detalhes não essenciais, os registros sério e paródico alternam-se constantemente, comprometendo a visada crítica desejada pelo cineasta, mal-sucedido ao tentar desenvolver um tema que continua a ganhar importância desde a época da rodagem do filme até hoje. Mojica fez uma continuação desta obra, Quando os deuses adormecem, ainda mais precária.

José Mojica Marins em cena do filme Exorcismo negro (1974)

EXORCISMO NEGRO (1974)

O filme contrasta com as produções anteriores de Mojica: sua estética Boca do Lixo está a anos-luz do artesanato kitsch e autêntico que distingue o cineasta. O filme foi encomendado pelo produtor Aníbal Massaini Neto (conhecido pelas pornochanchadas com pretensões de sofisticação), que pretendia tirar proveito do sucesso estrondoso de O exorcista (1973), de William Friedkin. A expressividade, determinada pela improvisação, pelos artifícios extravagantes e pelo excesso, desaparece no convencionalismo anódino, na uniformidade calculada da mise-en-scène.

Acadêmica, a câmera limita-se a observar a ação, sem implicar-se com ela, ao contrário do estilo de câmera dos outros filmes de Mojica, que tinha travellings e planos-seqüência desenvoltos.

A autenticidade do universo de Mojica só aparece pontualmente, nas seqüências na casa da bruxa, que remetem à cultura popular, aos ritos religiosos afro-brasileiros, e na seqüência do pesadelo, na qual acontecem a missa negra e o duelo entre Mojica e Zé do Caixão. O terror psicológico infundido pelas possessões demoníacas – o único ponto de contato entre Exorcismo negro e O exorcista, cultivado durante quase todo o filme – dá lugar ao horror visceral caro a Mojica na cena da missa negra. Mojica encontra, enfim, seu espaço, e interpreta Zé com a desconcertante sinceridade que lhe é habitual. Contudo, a mise-en-scène asséptica atenua a força da seqüência.

Nessas duas seqüências, a iluminação imita certo maneirismo de cor célebre nas adaptações dos contos de Edgar Allan Poe feitas por Roger Corman nos anos 1960, as quais lançaram a moda da intensa luz vermelha. A essa falta de originalidade junta-se uma câmera bem comportada, e o resultado é pouco convincente: o rito de horror capitaneado por Zé mostrase maquinal, convencional, quase “didático”, próximo da caricatura.

DELÍRIOS DE UM ANORMAL (1977-78)

Sem dinheiro para realizar um longa-metragem, depois de passar alguns anos envolvido apenas em filmes de encomenda pouco lucrativos, Mojica recorreu a um subterfúgio imaginativo para fazer Delírios de um anormal: utilizou cenas censuradas de outros filmes e tomadas não incluídas na montagem final destes, alinhavadas por poucas cenas rodadas especialmente para o filme. O artifício está presente no título: os “delírios” são as cenas censuradas, e “anormal” é o personagem das cenas rodadas especialmente para o longa.

Esta antologia de restos apresenta per versões, alucinações e figuras monstruosas pertencentes ao bestiário criado pelo cineasta. Tais imagens compõem essencialmente o pesadelo do personagem do psiquiatra; são os “delírios” prometidos pelo título. Há fragmentos da figuração do inferno de Esta noite encarnarei no teu cadáver, pedaços da missa negra de Exorcismo negro, atrocidades cometidas na câmara de tortura de Oaxiac Odez em Ideologia e passagens de Ritual dos sádicos.

Todavia, o filme não tem a mesma eficácia de outras aventuras de Zé do Caixão. As cenas recicladas são muito heterogêneas e sua car ga perturbadora se esvai na montagem: o hor rível confunde-se com o risível, o fundamental está ao lado do insignificante. Arranjados de modo primário, esses fragmentos repetem-se com insistência, conferindo um ritmo “estático” ao filme – apesar da extrema atomização da montagem. A própria textura das imagens, que varia de um fragmento para outro, reforça ainda mais sua disparidade.

Poucas cenas escapam do naufrágio, e, não por acaso, entre elas estão três que foram rodadas especialmente para o filme. A primeira mostra supliciados envolvidos por uma substância pastosa, que remete ao barro original da gênese bíblica. A segunda consiste em uma espécie de instalação mural que expõe torsos, nádegas e rostos femininos inseridos em uma sucessão de buracos feitos em uma enorme faixa de plástico. Esses dois conjuntos de imagens, explorados longamente por panorâmicas, aproximam-se da fantasmagoria livre e inventiva cara a Mojica. A terceira cena é um plano-fixo em que Zé está com uma dezena de mulheres nuas. A imagem é algo nebulosa e cheia de sobreposições, que duplicam as figuras e dão um caráter incerto, onírico, à representação. Estática, a cena é desconcer tante, pois o erotismo que os corpos poderiam transmitir é quase neutralizado pela atitude das mulheres: imóveis, elas têm uma expressão inocente no rosto e nas posturas corporais, oscilando entre o piedoso e o extático, e remetendo à beatitude de certa pintura religiosa. Esses deslocamentos estabelecem um contraste imprevisto que dá um tom insólito ao quadro, lembrando a imagética do sonho própria do surrealismo e o melhor da “estética” do cineasta.