Portal Brasileiro de Cinema O DESPERTAR DA BESTA (RITUAL DOS SÁDICOS)
O DESPERTAR DA BESTA (RITUAL DOS SÁDICOS) Ficção, 1969, 35 mm, P&B / cor, 91 min, longa-metragem Em um programa de televisão, um médico expõe sua controvertida tese sobre as drogas e a influência da auto-sugestão, resultado de pesquisas que realizou com LSD em um grupo de voluntários. As experiências utilizaram a imagem de Zé do Caixão, e o personagem aparece de maneira diferente nos delírios psicodélicos de cada um, misturando sexo, perversão e sadismo. O despertar da besta é uma obra-prima. Na filmografia de José Mojica Marins, o filme pode ser visto como um vôo em alta velocidade que, a certa altura, atinge em cheio o chamado Cinema Marginal ou de invenção. Trata-se de um filme que é, em sua natureza incontrolável, um verdadeiro elogio que o cineasta performático faz ao ato intuitivo da criação poética. Seu território é, naturalmente, o próprio cinema, da metalinguagem à utilização reificada do Zé do Caixão, da exploração auto-irônica da persona pública de Mojica Marins ao cinema de atrações e à presença de um paródico Ozualdo Candeias trabalhando como ator. Contudo, O despertar da besta vai mais longe, incorporando uma parafernália midiática e artística: HQs, teatro, TV e, claro, cinema. Diferentemente, portanto, de uma significativa parte dos filmes brasileiros realizados na época, em O despertar da besta não vemos o cinema como um universo isolado do conjunto da indústria cultural. A formação não-literária e não-universitária de Mojica Marins o distancia do discurso crítico radical contra a ação emburrecedora dos meios de comunicação de massa. Se tal discurso por um lado teve sua razão de ser, por outro acabou por reforçar uma imagem de auto-indulgência; como se, entre a “arte” e a “indústria”, o cinema sempre tivesse ocupado o espaço e a função de mediador “independente”. Mojica comete o “pecado capital” ao deixar claro que o cinema é também o lixo cultural que engolimos e vomitamos diariamente. Em O despertar da besta, porém, isso não é uma denúncia, mas um ponto de partida. As imagens televisivas do programa Quem tem medo da verdade? e da montagem teatral de Na selva das cidades, pelo Teatro Oficina, as cenas de orgia e de consumo de drogas, a canção hippie que fala de guerra e de paz, além de todo o universo pictórico de terror psicodélico, possuem hoje o valor de testemunho de uma época. Mojica Marins concebeu uma obra antropofágica, tropicalista, contracultural e, apesar de tudo, atemporal. Assistir a O despertar da besta é como ser tragado por um cinema que pouquíssimas vezes foi tentado entre nós, o que confere ao filme uma atualidade sempre renovada. Como a intenção de Mojica não é explicitar teses, tudo se resume ao terreno da pura intuição. O resultado traz surpresas e um enigmático fascínio, que nasce sobretudo do tratamento fotográfico (que combina contrastes entre um pretoe- branco cristalino às cores berrantes e as viragens coloridas) e de uma montagem criativa e indisciplinada. Quanto à “mensagem”, poucos filmes brasileiros foram tão bem-sucedidos em retratar o Brasil asfixiante, ácido, triste, nebuloso e pesado daque les anos pós-AI-5 – ainda que em momento algum o filme se mostre interessado em construir tal retrato, pelo menos de forma explícita ou discursiva. Amarrados pelo penumbroso debate televisivo entre o médico psiquiatra (Sérgio Hingst), os convidados reacionários (João Callegaro, Maurice Capovilla, Jairo Ferreira, Carlos Reichenbach e Walter Portella), além do próprio Mojica Marins (as himself), os personagens formam um elenco de aberrações muito mais inquietantes do que as alucinações: eles representam uma monstruosa classe-média, em todos os aspectos aterrorizante. Luís Alberto Rocha Melo |