Portal Brasileiro de Cinema A PRAGA
A PRAGA Ficção, 1980-2007, 8 mm, Cor, 58 min, média-metragem Durante um passeio, Mariana e Juvenal param para tirar fotos em frente à casa de uma senhora. Irritada, esta se revela uma bruxa e roga uma praga no jovem casal. A partir daí, eles terão suas vidas completamente alteradas. Originalmente concebido como um episódio do programa televisivo Além, muito além do além, na década de 60, A praga foi filmado em Super-8 apenas em 1980. Não concluído na época, foi finalizado em 2007 pela Heco Produções. Os situacionistas costumam dizer que os fatos são privados de conteúdo em nome do comunicável, de uma universalidade abstrata e de uma harmonia pervertida na qual cada um se realiza em um sentido inverso. Nesse sentido, eles se identificam com a linha contestatória de Sade, Fourier, Lewis Carroll, Lautréamont, o surrealismo e as correntes mais extremas da cultura e da arte. Na certa, se os situacionistas aportassem no Brasil se identificariam – e muito – com José Mojica Marins, o mais instintivo de nossos criadores fílmicos. Mojica é a versão cabocla, “bárbara e nossa” como diria Oswald, de Lautréamont, Sade e Carroll. O cinema de Mojica é intuitivo e visceral, primitivo e sofisticado, sempre contraditório, mas nunca arbitrário. Rogério Sganzerla considerava Mojica o cineasta do homem brasileiro por excelência: o homem boçal, reprimido, recalcado e submisso. Bressane o destaca no que ele tem de mais nativo: a pinga, o truco, o fumo de corda e o “despacho”. A praga transpira Brasil por todos os poros, como os melhores filmes de Humberto Mauro, os musicais caipiras de Osvaldo de Oliveira e todas as realizações do gênero horror feitas por Mojica Marins. Rodado em Super-8, A praga era um de seus projetos fílmicos dados como inacabados e/ou inter rompidos. Foi o ensejo prospectivo de Eugênio Puppo que trouxe à tona (e à vida) essa história de danação concebida pelo fértil Rubens Lucchetti. A primeira coisa que chama a atenção no trabalho de Puppo como montador do filme é a absoluta fidelidade ao “estranho mundo de Zé do Caixão”. Ao incluir um certo grafismo ao delírio imagético concebido pelo diretor, Puppo buscou subverter a precariedade da bitola e do apuro técnico com imaginação e originalidade. A praga nos deixa perplexos, comovidos e deliciosamente incomodados. Curiosamente, A praga lembra muito alguns dos filmes mais radicais de outro outsider, o espanhol Jesus Franco (o homem dos quase duzentos filmes), e em particular de Macumba sexual (1983). Em ambos os enredos, um personagem é assolado constantemente por pesadelos tenebrosos vaticinados por uma entidade terrível. Os dois diretores mandam o realismo às favas e reinventam uma religião e um sincretismo quase blasfemos. Franco faz uma salada mista de personagens mitológicos. Mojica, mais modesto, mistura mesa branca, candomblé, umbanda e quimbanda; na verdade, ele cria uma religião própria, cujo guia espiritual se assemelha ao índio Aymoré; aquele das antigas latas de biscoito. Mas, aparentemente, não existe em nenhum dos dois casos o intuito de deboche ou menosprezo pela fé dos deserdados, mas uma recusa explícita do realismo. Não interessa a Mojica e a Jesus Franco reproduzir fielmente o ritual dos cultos e seitas existentes, pois eles sabem que toda encenação do real, por mais bem intencionada que seja, pressupõe a perfídia. Outra sintonia fina entre os dois diretores é que ambos investem essencialmente na atmosfera onírica, numa certa viagem lisérgica pelo inconsciente de seus protagonistas. Jesus Franco traveste Mefisto na sexualidade emasculada de Ajita Wilson, uma sofisticada transexual. Mojica Marins explora à exaustão o veio histriônico da falecida (e genial) Wanda Kosmo como a bruxa medonha que amaldiçoa o protagonista. Mojica enquadra a atriz como se estivesse filmando Shakespeare. Wanda impregna A praga de Macbeth. Se por seus valores tão nativos e deflagradores, ou pela transgressiva superação dos limites de sua bitola e de seu orçamento, este filme já não merecesse ser “ressuscitado”, a empreitada de finalizar A praga já se justificaria só por recuperar as derradeiras imagens, impactantes e aterradoras (“todo anjo é terrível”), de uma atriz magistral (excessiva e real, como Orson Welles e Charles Laughton) e cruelmente negligenciada. Carlos Reichenbach |