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Cinema Marginal ? Jean-Claude Bernardet
Há três, quatro décadas que nos acostumamos a pensar o cinema dos anos 60-70 em termos de Cinema Novo e Cinema Marginal – isto é, o cinema culto, porque no comercial, o ciclo do cangaço, etc., que era o que o público via, não pensamos muito. Outras denominações surgiram: Udigrúdi (avacalhação do Underground americano inventada por Glauber Rocha), Cinema Marginalizado (expressão sobre a qual Cosme Alves Netto, então diretor da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, insistia particularmente, e talvez a mais adequada), ou Cinema de Invenção (criação mais recente de Jairo Ferreira). Mas essas expressões não pegaram e Cinema Marginal tinha um trunfo poderoso: o título do filme de Ozualdo Candeias, A margem, o primeiro a ser incluído no movimento. No início, a oposição CN x CM era bem menos efetiva do que costumamos acreditar, tanto entre as pessoas como entre os filmes. Quando começaram suas carreiras, Rogério Sganzerla e Júlio Bressane não escondiam o interesse e a admiração pela obra de Paulo Cesar Saraceni e Glauber Rocha. Por outro lado, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Walter Lima fizeram um pouco mais do que namorar o Cinema Marginal – Câncer, Fome de amor, Pretoria e Na boca da noite, respectivamente. Cara a cara foi recebido pela imprensa como um filme da nova geração do Cinema Novo. No entanto, acabou ficando assim: Cinema Novo e Cinema Marginal, e talvez mesmo Cinema Novo versus Cinema Marginal. É claro que críticos e cineastas já destacaram pontos de contato entre os dois movimentos. Por exemplo, os baixos orçamentos na fase inicial do Cinema Novo e no Cinema marginal. Ou a noção de autor, introduzida no Brasil pelo Cinema Novo e herdada pelo Cinema Marginal. Já se apontou que personagens típicos do Cinema Novo, como Marcelo (Oduvaldo Viana Filho), de O desafio, ou Paulo (Jardel Filho), de Terra em transe, mantêm relações de parentesco com um personagem típico do Cinema Marginal, o bandido da luz vermelha: são personagens desesperançosos que se desestruturam. Essa afirmação continua válida mesmo tomando-se em consideração modulações do personagem. Marcelo acaba o filme descendo uma escada, acompanhado pela canção "É um tempo de guerra, é um tempo sem sol" – final típico do Cinema Novo, que sugere uma luta num futuro indefinido (o mesmo em Terra em transe). Enquanto isso, o bandido suicida-se. É necessário, porém, levar em conta que tais modulações não afetam profundamente os personagens: Marcelo está de fato sem perspectiva e a perspectiva guerreira que desponta no final não resulta de uma ação do personagem, mas de uma canção colocada na trilha sonora pelo narrador. Apesar dessas aproximações, continuamos mantendo os recortes Cinema Novo e Cinema Marginal, contemporâneos dos movimentos cinematográficos que designam. São eles que acabaram organizando nossa compreensão do cinema culto daqueles anos. Eles têm uma razão de ser, pois refletem polêmicas da época. Mas acredito que são recortes hoje ultrapassados e que, em vez de enriquecer a nossa compreensão dos filmes, a embotam. Aliás, essa insatisfação não é de agora. Já na época, Bressane e Sganzerla discordavam da expressão Cinema Marginal, já que eles não faziam um cinema que queria ficar à margem dos circuitos exibidores (atitude bem diferente do Underground norte-americano), mas um cinema que, com raras exceções (o bandido da luz vermelha), foi marginalizado pelos circuitos – e pela censura. E João Batista de Andrade não apreciou ver Gamal, o delírio do sexo incluído na categoria Cinema Marginal, o que ele sentiu como uma camisa de força que limitava e distorcia a compreensão de seu filme. É como se não conseguíssemos pensar fora desse sistema de categorias. Tal sistema tem o efeito de promover semelhanças e afinidades entre filmes e diretores, em detrimento de diferenças e particularidades e também de outras afinidades. A perda é evidente, para os filmes e para nós. Podemos questionar os filmes em busca de laços que as categorias tradicionais tendem a encobrir. Tentemos pensar Orgia ou o homem que deu cria, por exemplo: sua estrutura narrativa é uma viagem, como também é uma viagem a de Cabaré mineiro, e nessa viagem pode importar mais o percurso do que a partida e a chegada. Ambos os filmes são estruturados por uma trajetória com diversas interrupções que constituem os episódios da ação (algo como "passos") e, por mais diferentes que sejam em tudo o mais, essa semelhança estrutural da narrativa os aproxima. Mas o que é Vidas secas senão uma viagem cortada, dessa vez não por várias mas por uma única interrupção que ocupa a quase totalidade da narrativa do filme, prensada entre os planos da chegada e os da partida? Essa estrutura permite relacionar filmes que nosso pensamento habitual coloca em gavetas diferentes, e essa relação é relevante se levarmos em consideração que a viagem, o deslocamento dentro do país (e fora dele) é tema fundamental da cultura brasileira. A metáfora da viagem continua rendendo dividendos, veja-se Cronicamente inviável. Quem viaja em Orgia? Inicialmente, um indivíduo, a que outros vão se agregando e formam um grupo que, pela diversidade de suas figuras, acaba por construir como que uma amostra da sociedade brasileira, sob o viés da avacalhação. Essa amostra percorre o país, o descobre. O caráter de metáfora sociológica do grupo e da viagem de descoberta já tinha sido percebido na época pelo assistente de direção Walcir Carrasco. Enquanto metáfora, Orgia apóia-se sobre uma forma dramatúrgica semelhante à de diversos filmes do Cinema Novo, às vezes chamados de "cinema alegórico", como por exemplo Brasil ano 2000 e Tudo bem. Aliás, diga-se de passagem que a primeira versão do argumento de Tudo bem era uma viagem pelo Brasil; na evolução do trabalho, uma condensação espacial transformou o espaço fechado do carro em apartamento, mas a estrutura do filme é como a simetria invertida de um filme de viagem. Trata-se de compor uma metáfora abrangente do Brasil: o filme constrói um microcosmo que representa uma totalidade nacional, e o enredo tende a se tornar uma parábola. Essa "metáfora abrangente", que tanto seduziu o Cinema Novo, visitou o Cinema Marginal mais de uma vez (O monstro Caraïba, O gigante da América) e, embora cansada, continua manifestando-se de vez em quando (Amélia). Pode parecer estranho relacionar uma comédia musical bem-comportada, como Brasil ano 2000, ou a elegância estilística de Tudo bem com a avacalhação agressiva de Orgia, pois a oposição é óbvia, já que o Cinema Marginal rejeitava o cinema de espetáculo para o qual se encaminhava o Cinema Novo. Com certeza, Orgia critica o espetáculo amável proposto por Brasil ano 2000. No entanto, esses filmes repousam sobre uma mesma base dramatúrgica, se valem todos do mesmo modelo. Orgia relaciona-se também com um romance que muito seduziu o Cinema Novo: Quarup, de Antônio Callado (Glauber Rocha falou em adaptá-lo, o que foi feito bem mais tarde por Ruy Guerra). A viagem de descoberta do Brasil em Orgia acaba num cemitério; a de Quarup, num formigueiro, que é o centro do país. Em ambos os casos, a viagem metafórica acaba de forma derrisória. Todos esses filmes, independentemente de sua filiação ideológica e estética, trabalham com as mesmas figuras, a viagem ou a metáfora abrangente e, por mais que as tratem de maneira diversa, isto cria fortes laços entre eles. Orgia, em oposição a um Brasil ano 2000, está marcado por atitudes humanas que a censura qualificou de animalescas. Dedos no nariz, rastejar, gemidos, emissões de voz pouco articuladas, enfim, uma série de elementos esculachados que Fernão Ramos já analisou como características do Cinema Marginal. Inclui-se o gosto pelo viscoso, pelas matérias moles – lembrem-se do sangue espesso que desliza da boca de Helena Ignes em A mulher de todos. Todo um trabalho sobre matérias e sobre o corpo marca estes filmes. E isso não era característica do estilo do Cinema Novo. No entanto, revendo filmes como Pindorama ou Os deuses e os mortos, não podemos deixar de encontrar familiaridades: a viscosidade da lama, o corpo humano em decomposição; a degradação está aqui presente como em muitos filmes "marginais". O trabalho sobre a alegoria e a tendência à parábola relacionam-se com determinada concepção do espaço cinematográfico, que podemos qualificar de teatralização do espaço: cenas são filmadas com uma câmera muitas vezes frontal, como se elas se desenvolvessem num palco. Isto ocorre em inúmeros filmes, sejam eles "novos" ou "marginais": a dança no cemitério, em Orgia; o monólogo de Milton Gonçalves em O anjo nasceu; o uso da mansão do Parque Lage, em Terra em transe e Os herdeiros; as canções de Brasil ano 2000, etc. Estes comentários não visam a análises exaustivas. Longe disso, limitam-se a assinalar que outros percursos reveladores são possíveis furando as fronteiras de nossas categorias costumeiras. Por exemplo, O anjo nasceu é um filme de planos longos, uma narrativa simples e linear, diferentemente de Matou a família e foi ao cinema; apesar da presença de um rio em determinada seqüência, é um filme seco – rochas, pedras e pedregulhos fazem parte de sua estética. Segundo as categorias (e é difícil se livrar das categorias) de Haroldo de Campos, "poesia menos" e "poesia mais" (nas minhas palavras, poesia da economia, da secura, dos recursos parcos, da parcimônia; e poesia da abundância, da pletora, da multiplicação, do florescimento), O anjo nasceu é um filme "poesia menos". Ora, que filme é mais "poesia menos" do que Vidas secas? Sob este viés, O anjo nasceu está mais próximo de Vidas secas que do bandido da luz vermelha (São Jerônimo não me deixa mentir): a secura, o plano demorado, a câmera que espera o personagem chegando ou assiste ao seu afastamento. Anda-se muito, nestes dois filmes, e andar nem sempre é fácil: os sapatos machucam ou a ferida na perna dói. Aliás, não só nestes filmes se anda. O cinema da deambulação é uma criação dos anos 20 (vide Limite), e se tornou um traço estilístico do cinema dos anos 50-70 (Rosselini, Nouvelle Vague, Antonioni). A deambulação foi retomada pelo Cinema Novo, desde Porto das Caixas e Os cafajestes, e pelo Cinema Marginal. Quando vários personagens deslocam-se um atrás do outro, forma-se um cortejo. Essa forma foi também apreciada nos anos 50-60: Cinzas e diamantes, La dolce vita, com ecos no cinema brasileiro, e Fome de amor, por exemplo, e evidentemente Orgia, filme de deambulação por excelência, em que o grupo vai se formando e organiza-se de modo paulatino num cortejo. A deambulação, tradicional arte pedestre, pode ser automotiva: O desafio, Vida de artista e seus planos de carros celebrados por Jairo Ferreira; os inesquecíveis planos de Bang Bang pelas avenidas de Belo Horizonte. Essa arte do travelling sem corte estica o tempo num espaço em continuidade. O tempo longo; o espaço em continuidade; a câmera e a montagem que respeitam o tempo da evolução de um ou mais personagens ou objetos, em movimento ou não; o ritmo que se organiza dentro do plano e não pela seqüência de planos, nos fascinavam. Lembro-me ter perguntado a Sérgio Santeiro o porquê dessa fascinação. Não soubemos responder. Nos entregávamos à contemplação da imagem. Quando a informação do plano esgotava-se, a duração saturada aumentava a intensidade da contemplação e da fascinação. A densidade da luz, a granulação, os matizes do branco e preto, pequenos incidentes de que não nos damos conta quando a atenção está presa ao essencial da informação, tudo isso virava uma aventura visual. Neste sentido, o cinema de Bressane e seus planos longos, longuíssimos, que valorizam a textura suja da imagem, é um cinema da contemplação e da fascinação. E não faltam planos longos no cinema brasileiro dos anos 60. Esse tempo e espaço esticados em continuidade fizeram a glória do plano-seqüência, que já nos anos 50, com Orson Welles e o Neo-realismo, André Bazin celebrava. O plano-seqüência não é apenas um plano de longa duração, é um plano (sem corte) em que se resolve uma pequena unidade narrativa do filme. Eles são mais raros do que se pensa, podemos citar dois: o plano da cozinha com Márcia Rodrigues e Maria Gladys em Matou a família e foi ao cinema, e a cena da Rádio Nacional, de Os herdeiros. Esse tempo de longa duração foi também o tempo do Cinema Verdade. A dramaturgia deste movimento documentário exigia que a câmera se detivesse nas pessoas filmadas, não necessariamente para recolher seu depoimento, mas observando seu comportamento, espreitando suas reações, verbais ou gestuais, a contração de um músculo facial. O apogeu do Cinema Verdade no Brasil é A opinião pública, que contém planos antológicos, como o da moça a quem a câmera e a montagem deixam todo o tempo de narrar suas desventuras, durante uma festa, com o namorado e a rival. Outro plano extraordinário, possível justamente por causa da sua concepção de tempo e de montagem, é o do monólogo de Odete Lara em Câncer. Os atores improvisavam sobre temas fornecidos pelo diretor. Neste plano, Odete Lara sai de seu personagem e passa a confessar publicamente as suas angústias. O modo da confissão é perceptível pelo tom da voz, o ritmo da fala, a expressão facial; poderíamos pensar que não é nada demais por parte de uma boa atriz, mas, se quisermos provas, o que ela diz bate com declarações que constam de seu livro de memórias. Odete Lara expõe com sinceridade senão como ela é, pelo menos como ela se vê. Este plano é particularmente relevante porque, ao lado da atriz, em segundo plano, encontra-se Hugo Carvana, que entrecorta com breves comentários o monólogo de Odete Lara. O surpreendente é que Carvana não sai do seu personagem, ele interpreta. Temos assim, no mesmo plano, com câmera fixa, sem corte, dois comportamentos diferenciados: o ator nos remete à ficção, enquanto a atriz nos remete ao documentário confessional. Essa duplicidade parece ter sido problemática para o fotógrafo, pois o plano abre com foco em Carvana e assim permanece por um bom tempo, até se deslocar para Odete Lara, como se ela, pela sua sinceridade e intensidade, conquistasse o foco para si. Numa situação como essa, a câmera não se limita a registrar o que está na sua frente, mas expõe a sua relação com os atores. O plano em si, não pelo seu referente, ou não apenas pelo seu referente, mas na sua materialidade, é um drama. Este plano me fascina. Mas não só de deambulação e planos longos vive o cinema dos anos 60. Um dos clássicos do Cinema Marginal é o contrário disso: o bandido da luz vermelha. Este é um filme que trabalha o corte, a fragmentação. Não é a câmara, fixa ou em movimento, nem o ator que regem o tempo e o espaço, mas a montagem. Numa montagem ainda hoje vigorosa e audaciosa, O bandido cria tempos e espaços não usuais. Por exemplo, quando retoma em determinada seqüência o material de filmagem já usado parcialmente em seqüência anterior (ver o muro onde estão as pichações do bandido), tem-se a impressão de que o tempo não se desenvolve linearmente (como pensamos ser a dinâmica do tempo na nossa vida cotidiana), mas que se enrosca sobre si mesmo, que desenha meandros. Ou então quando um plano noturno sucede um diurno sem que tenha havido mudança de cena ou passagem de tempo. Outro filme notável que se constrói pela montagem é Tristes trópicos. O material deste filme é tal na sua heterogeneidade que, para qualquer espectador, fica óbvio que poderia ter sido montado de maneira completamente diferente. Enquanto no plano-seqüência o corte é proibido e o plano oferece uma montagem interna que se organiza durante a filmagem, em Tristes trópicos a moviola é dona da situação. Essa concepção espaço-temporal fragmentada deixa extraordinária liberdade à montagem, mas também à trilha sonora. Assim como os planos de Tristes trópicos poderiam ter sido montados de outra forma, o som que os acompanha poderia ter sido outro. Uma voz over conta uma longa e complicada história, a qual só está na faixa sonora. Por vezes, as faixas sonora e visual parecem se encontrar e tem-se até a impressão de que a imagem dá suporte à fala; outras vezes, o distanciamento é grande e o espectador trabalha para estabelecer relações entre as duas. Essa concepção de cinema que trabalha a fragmentação sonora e visual possibilita que o filme continue se criando até a sonorização. A finalização não é apenas a concretização do já previsto, mas sim um momento em que o filme ainda pode se transformar em profundidade. É só pensar em substituir o texto de Tristes trópicos por outro, o que seria perfeitamente factível, para se perceber como se articula este cinema. Outro filme que se vale dos poderes da voz over é Fome de amor. Preste-se atenção à quantidade de falas over ou off e se perceberá quantos elementos, que com certeza não constavam do roteiro e provavelmente nem foram pensados durante a filmagem, foram acrescentados na montagem e na sonorização. O bandido da luz vermelha é outro rei da voz over e off. O diálogo do filme às vezes dribla o plano. Numa cena, Helena Inês e Paulo Villaça estão num quarto. Helena está sentada na cama três quartos de costas; ela fala e percebemos claramente que o que ouvimos não é o que ela disse na filmagem, pois o ritmo do corpo não corresponde à emissão de voz (estes filmes não foram feitos em som direto, mas dublados em estúdios). Embora particularmente presente em o bandido da luz vermelha, esse recurso verifica-se inúmeras vezes no cinema da época, aproveitando atores de três quartos de costas, de longe, para recriar diálogos. Haverá quem o atribuirá ao desleixo. Que seja ou não, esse recurso à voz over e off tornou-se um fato de linguagem. Essa composição imagem-som está nos antípodas do plano-seqüência, que, no caso do plano de Odete Lara, forma um bloco audiovisual indivisível. Essas formas de linguagem antagônicas conviviam. Vários recursos de linguagem aqui comentados apontam para o improviso, e é certo que houve improvisação tanto em o bandido da luz vermelha como em Fome de amor ou Câncer. O improviso, considerado um horror pela mentalidade profissional, foi freqüentemente um recurso criador. Ele não aceita que o roteiro seja o filme pronto no papel nem que filmagem, montagem e sonorização se limitem a ser a concretização do já previsto pelo escrito. O improviso é o filme sendo criado durante a sua elaboração. Um dos mais belos exemplos de improvisação deve-se a João Batista de Andrade em Migrantes. Durante uma entrevista com um morador de rua, se interpôs um transeunte engravatado. Em vez de afastar o intruso, o diretor o deixou falar com o sem-teto (na época, não se usava esta expressão), resultando um surpreendente diálogo entre um migrante desempregado e um sujeito comodamente instalado na sua classe média. A decisão de deixar o transeunte foi tomada numa fração de segundo. Sem ela, o filme poderia ser interessante pelas suas informações, mas teria uma estrutura convencional. Diante de um filme como este, percebe-se que o improviso não é um quebra-galho de última hora, pois a justeza da decisão tomada quase sem reflexão provém de uma preparação e de uma convicção quanto ao cinema que o diretor quer fazer. Essas reflexões, um pouco à maneira de Jean Douchet, nada propõem, apenas sugerem trilhas possíveis para tentar pensar o cinema brasileiro culto dos anos 60-70 de forma diferente da que, em geral, fizemos até agora. Elas apontam afinidades e parentescos que não são definidos pelas categorias tradicionais de Cinema Novo e Cinema Marginal, mas pelo estilo, por matérias, espaços, movimentos, ritmos, etc. Apontam uma apreensão mais tátil dos filmes, buscam antes a sua materialidade do que suas significações ou ideologias. Isto pode ser uma indicação de que estamos nos distanciando das conformações ideológico-políticas vigentes na época em que estes filmes foram criados. Determinadas correntes ideológicas tiveram seu tempo. Hoje precisamos de outras. A utopia romântica do Cinema Novo envelheceu, a contracultura dos anos 60-70 pertence ao passado. Mas a corrida de Geraldo del Rey em direção ao mar, no final de Deus e o diabo na terra do sol, o grito e a estrada finais de O anjo nasceu, a "avacalhação" e a "esculhambação" de o bandido da luz vermelha preservaram intactos seu vigor, sua beleza e seu poder de estranhamento. |