Portal Brasileiro de Cinema Triunfo na derrota
Triunfo na derrota Paulo Sacramento
Não sei desse tal Cinema Marginal, com letra maiúscula. Como escola de cinema, nunca me interessou. Nada de regras ou margens, limites ou fronteiras. Apaixonei-me pelo cinema e especificamente por esse cinema não por ele estar à margem, mas por estar além dela, longe das estradas de mão e contramão. Os caminhos do cinema são todos os caminhos, mas os que me agradam são tridimensionais. Aprendi com esses filmes e com esses caras a duvidar do mainstream, a rir das nossas impossibilidades, a fazer acontecer apesar delas. E a viver, sem ditaduras (da beleza, da coerência, do talento, da grana). Escracho, desespero, o que for, perdem para mim o sentido quando teorizados. Jairo Ferreira é o homem da chave, pois registrou, atuou, pensou, sentiu tudo de dentro, câmera na mão, falível e exuberante. Cinema de invenção, o livro, dá a cara do “movimento”. Suas apostas e certezas não são demonstradas, mas compartilhadas. Elas existem e estão ao alcance da mão. As idéias ali contidas resplandecem sem ser inatingíveis, ao contrário, “faça você mesmo” é o que está estampado em cada imagem.Cinema de invenção e de generosidade, quenão se envergonha nem esconde seus defeitos.Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Triunfo na derrota, por que não?Meu contato com esses filmes e com seusartífices começou numa mostra do Cinema de Invenção no MIS, eu vendo os filmes e devorando o livro. Depois fui conhecer o Jairo, Carlão, Calasso, Candeias, Rogério, Ebert, Mojica, Tonacci, Callegaro, Bressane, Ivan Cardoso… Não, estou errado! Meu primeiro contato com esse cinema não foi numa sala de projeção. Quando eu era moleque, assistia na TV preto-e-branco os programas do Zé do Caixão e me divertia muito com aquele show. Mas um dia, com seis ou sete anos de idade, encontrei com o Mojica na entrada do meu prédio, filmando, e pensei: “Meu Deus, este cara existe, aquilo tudo é de verdade, não é só um programa de televisão!”. Esse é o espírito da coisa. O cinema marginal é real, existe, é seu vizinho ou está dentro de você. Esqueça os pedestais, o glamour, as mulheres de revista. O mundo tem cheiro, é palpável. Goze com ele, experimente seus venenos, quebre-o, olhe-o pelo avesso. O mundo é maior do que querem nos fazer crer, e essa grandeza não oprime pois nela cabem nossas fraquezas e nossos sonhos. As leis são falsas e existem para serem burladas, assim não fosse não seriam leis. “Não há lei além de ‘faze o que tu queres’.” (Crowley). Filmes em trânsito, pessoas em trânsito, idéias em movimento. O cinema mais libertário nascido no ventre do mercado, boca do lixo. Irmanado no respeito à diferença e na dedicação à porra-louquice. Hoje, quando ouço falar em diversidade, tenho vontade de vomitar. Diverso era o Cinema Marginal, que tinha a erudição do Carlão, a genialidade do Rogério, a militância do Jairo, a impetuosidade do Candeias, a popularidade do Mojica. Nossa diversidade atual é a da caixinha de queijos pasteurizados: gorgonzola, provolone, emmenthal, todos com o mesmo gosto. Mas vamos sair dessa vala comum. Ou não? Às vezes penso que essas pessoas e esses filmes já não cabem nos dias de hoje, dias de pragmatismo e conformismo exacerbado. Mas é certo que ervas daninhas e árvores fortes e teimosas racharão o concreto desse cinema palatável das leis de incentivo, pois o Ímpeto não morre (como as baratas, que resistirão à nossa imbecilidade bélica e financeira). Pois aí estão os filmes, sobreviventes do massacre artístico imposto a seus realizadores, exilados em seu próprio país, impedidos de exercerem sua profissão, calados numa censura covarde que não ousa dizer seu nome: falso mercado. Poucos criaram estruturas que lhes permitissem seguir filmando (como Carlão e Bressane, cada qual à sua maneira), mas a imensa maioria não se adaptou e foi, de modo cruel, confinada à margem. Muita coisa mudou entre a primeira e a atual edição desta mostra que clandestinamente semeia no cerne do Sistema. Se o cinema é um campo de batalhas (e é), nos últimos meses tivemos baixas cruciais no front da resistência da Invenção. Primeiro perdemos Jairo Ferreira, o crítico, cineasta, militante que deu na carne o exemplo máximo de coerência e irredutibilidade, colocando-se acima do conforto, do dinheiro, das convenções, das classes sociais, da própria fome. Encarnação árida da liberdade, sem receio de pagar o alto preço cobrado por ela. Em seguida foi Rogério Sganzerla, o visionário exuberante, autor revolucionário vítima da reação violenta à sua genialidade precoce. Como ele mesmo sentia, nunca lhe perdoaram tamanha destreza, precisão, criatividade, capacidade de realização. Tentar reduzi-lo à criação brilhante de O Bandido da Luz Vermelha e A mulher de todos é sinal de nossa limitação dramática na apreensão e desfrute estéticos. Com seus dois primeiros filmes, Rogério foi colocado num infame pedestal, forjado como túmulo (Mojica, outro visionário, seguia sonhando e filmando suas histórias de pessoas enterradas vivas). Por fim, deixou-nos no início deste ano o grande libertário da montagem cinematográfica (e parceiro de universo de Sganzerla), Sylvio Renoldi. Intuitivo e certeiro, Jairo Ferreira já o apontava como outro gênio por trás da exuberância do Bandido. Sylvio atuou em diversos filmes desta mostra (O Bandido, O pornógrafo, As libertinas, O profeta da fome), e nunca se restringiu a escolas ou gêneros. Além desses, comandou o ritmo de títulos tão díspares quanto A hora e a vez de Augusto Matraga, O homem nu e Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, para ficar em poucos e representativos filmes, marcos da história de nosso cinema. Montou westerns, comédias, filmes eróticos. Sabia que estava acima de rótulos, como todos estamos. E exerceu sua atividade deixando a lição do experimentalismo e o brilho de seu talento. Dessas pessoas a quem tanto devemos, fica a memória viva da presença sempre iluminada. E ainda os filmes, para ver e rever, inquietos e inevitavelmente explosivos. Para além dos que aqui citei por maior afinidade, inúmeros outros estão aí cumprindo sua sina de artistas, antenas, profetas, magos. Evoé aos que abriram e aos que seguem abrindo o caminho. O cinema é uma ferramenta fantástica para o conhecimento e a libertação, mas não a única. Aproveitemos esta oportunidade para olhar nestes filmes como a vida corre pulsante, sem freios. Vejam como se encaixam perfeitamente neste mundo cada defeito, cada fracasso, e como é possível e maravilhoso viver contribuindo com cada um de nossos erros à divina comédia humana, esplendorosa na força de seu mistério. |