Portal Brasileiro de Cinema A arte do (im)possível
A arte do (im)possível Carlos Ebert
Arte é técnica. Se hoje esta sentença faz sentido para alguns da minha geração, na década de 60 (do século passado), era desconsiderada a priori por todos e rotulada como "um mecanicismo stalinista". O cinema, caçula das artes e filho da revolução industrial, se apoia num aparato técnico que pode e está sendo minimizado, mas que de forma alguma é descartável. Para produzir imagens em movimento são necessários equipamentos que empregam mecânica, óptica e eletricidade. Não há como fugir disso. Participei de alguns dos filmes selecionados para esta mostra, desempenhando funções técnicas, e quando fui convidado a refletir sobre a cinematografia de então, algumas lembranças marcantes acabaram por delinear um roteiro de impressões e idéias que, na falta de uma metodologia mais rigorosa, passo a seguir. Eram tempos de furiosa antropofagia visual. Ambicionávamos sínteses improváveis: irmãos Maysles e Samuel Fuller. Câmera na mão e chiaroscuro barroco. Mauro e Glauber. Não raro, como atestam alguns momentos destes filmes, conseguíamos operar senão uma síntese, pelo menos uma explicitação das teses e antíteses com que nos debatíamos, que por sua vez surgiram e se consumiram ao sabor dos ciclos (ou quem sabe, surtos) que caracterizam a trajetória do nosso cinema. Do primitivismo dos cinegrafistas do início do século XX, passando pelas tentativas de indústria da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, até a onda autoral do Cinema Novo, mudaram os paradigmas, mas os métodos, ou a falta deles, permaneceram os mesmos. Somos a pátria do improviso. E o que na música é uma benção, no cinema nem sempre resulta em mais do que confusão. Filmar com "jeitinho" nada mais era do que tentar superar as deficiências de equipamento, material sensível, pessoal e infra-estrutura. Como fotógrafos de produções mambembes, andávamos atrás da luz ambiente, presente do Criador, luz que dispensa listas e não gera faturas. O problema é que filmávamos nos trópicos e nessas latitudes a latitude dos filmes não dá conta dos incríveis contrastes existentes. Os "estouros" luminosos eram inevitáveis e não restava outra opção senão assumi-los. Já os financeiros iam prá pindura. Ficou famosa a história do colega que, advertido por um técnico mais experiente de que fora da sala onde filmavam a luz estava fortíssima e as janelas abertas estavam em quadro, retrucou: "E daí com lá fora? Eu estou filmando aqui dentro". Nada mais lhe foi dito, nem perguntado. Não só assumíamos os contrastes, como amávamos a fotografia dura. O preto no branco. Se para os autores de então "a moral era uma questão de travellings", para nós, fotógrafos, era uma questão de contraste. E aí instaurou-se um conflito, pois os laboratórios rezavam pela cartilha dos fabricantes de filmes e queriam obter no processamento o máximo de gradação possível no negativo (o que, diga-se de passagem, era o certo). Waldemar Lima, em entrevista a ABC, contou seu drama em Deus e o diabo com a Líder-Rio: enquanto ele buscava na luz do Nordeste a textura da xilogravura, o laboratório se esforçava para lhe dar céus com nuvens de western... A questão dos laboratórios era grave. Eram só dois: Líder, com sede no Rio, e Rex, em São Paulo. De alguma maneira transpunham para a sensitometria a velha rixa bocó entre cariocas e paulistas. Eu, carioca auto-exilado, trabalhava com a Rex. Eram várias casinhas na rua Jaceguai, interligadas por escadas e corredores estreitos, o que lhe valia o apelido de "labirintório", dado aliás pelo próprio dono, o húngaro Adalberto Kemeny, que todos admirávamos por ser "do ramo" (nos anos 20, ele fotografou o belíssimo São Paulo, sinfonia de uma metrópole). Do outro lado estava a Líder, com uma filial na rua Treze de Maio e um histórico de glórias e algumas brigas homéricas com os DFs, mas que "facilitava" para a produção. Resumindo: lá pelas tantas, a Líder comprou a Rex e amargamos algumas décadas de "laboratório único", o que colocou a questão técnica em plena sintonia com a política de então. Mas nem tudo eram dificuldades e falta de opções. Com o predomínio ainda do preto e branco, as opções de compra de negativo eram bem mais variadas do que as atuais. Podíamos filmar com Kodak, Du Pont, Gevaert, Ferrania e Fuji. Cada um era uma inspiração e sugeria uma paleta diferente. Lembro que no Bandido da luz vermelha, filmamos com todos os negativos da praça, o que certamente não pode ser considerado um procedimento ortodoxo, mas que proporcionou a Peter Overbeck e a mim uma experiência ímpar e inestimável. Vivíamos então o auge da contracultura. Um dos meus gurus prediletos era Buckminster Fuller. Pensador multidisciplinar, dublê de arquiteto e filósofo, pregava o princípio do Dymaxion: fazer mais com menos. Se a natureza agia assim, quem éramos nós para fazer diferente? Na cinematografia local, sua inspiração calou e colou fundo. Tudo o que refletisse luz era bem-vindo ao set _ até com os lençóis de casal da mãe de uma namorada construí rebatedores. As lâmpadas fotoflood, relativamente baratas e que dispensavam refletores, eram as nossas favoritas para interiores. A sucata da Vera Cruz, os frankensteins do Honório Marim e os gentilmente cedidos pelo Jaques Dehenzelein completavam o parque de luz. Pelos Cahiers du Cinema, comprados na livraria Francesa, da Barão de Itapetininga, acompanhávamos atentos as experiências do Raoul Coutard com os filmes de fotografia mais sensíveis (800ASA!!!), vendidos em rolos de 30 metros, que ele tinha a manha de emendar na câmera escura para usar na sua Cameflex. Genial! Gianni Di Venanzo, com suas calhas de fotofloods de luz suave e sem sombras, virou um ídolo. Mas, mesmo sabendo tudo isso, não escapávamos de "iluminar mais as idéias e o discurso do diretor do que os cenários e os atores", como comentou com perspicácia o Lauro Escorel. Na época, muitos dos filmes sofriam de "síndrome da alegoria ", e o conceito acabava sobrepujando a imagem, salvo raras exceções. Administrávamos com liberalidade a herança do Cinema Novo e, na falta de outros recursos para movimentar a velha Arriflex IIB, continuávamos a levá-la nas mãos. Da alternância desses planos sacudidos com os longos gerais fixos sresultava uma espécie de contratempo rítmico, que ficou como uma marca registrada do movimento. Do improviso, louvado na época e execrado no "surto" seguinte (o cinemão colorido da Embrafilme), ficou uma lição preciosa, uma espécie de "navalha de Ockham" para o nosso cinema ("as instâncias não devem se multiplicar além da necessidade") _ um apelo à racionalidade, muito útil para cortar aqueles supérfluos, tão ao gosto do atual cinema para-publicitário. Em suma: foi ótimo enquanto durou. Se fez escola, não se propôs a isso. Dos sobreviventes, uns permanecem na atividade, outros ficaram na saudade. Uma coisa não se pode negar; mexeu com a linguagem, acordou (e fez dormir) um público já enfadado de tanta sociologia e boas intenções. Rebeldes, sim, mas quase todos de excelentes famílias. Fora isso, nunca vamos poder aparecer melhor do que realmente fomos. Graças a Deus! |